Já está no ar minha crônica de setembro de 23 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre a eterna controvérsia entre alguns bibliófilos e bibliófilas: afinal, riscar ou não riscar livros?
Para embasar a reflexão, recorro a “Por que Ler os Clássicos?”, de Italo Calvino, e a “O Lugar”, de Annie Ernaux.
Confira!
(Ah, e aproveite para ler as colunas anteriores):
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Não me deixeis cair em tentação – e livrai os livros do mal
Por Ricardo Mituti
Acompanho um professor de literatura na internet que, dia desses, postou um vídeo dizendo que seus livros eram seus escravos. Fiquei chocado. Por óbvio, os livros são dele e ele os trata como bem entender. Mas é que como eu sempre tratei meus livros como meus amigos, não consegui sentir outra coisa que não alguma raiva do respeitabilíssimo mestre.
E antes que você embarque na minha e pegue bronca do referido professor, devo ser justo e contextualizar a situação: falava ele sobre grifar ou não grifar livros – questão das mais controversas, quase hamletiana, no universo da bibliofilia.
Defende o professor que os livros não são “objetos sagrados, mas ferramentas”. Sendo ferramentas, devem, portanto, ser utilizadas como aprouver a cada um – inclusive grifando-os, dobrando páginas e personalizando-os. Entende ele que, agindo assim, estamos respeitando os livros, “tornando o conteúdo nosso”.
Trata-se de um argumento válido, sem dúvida. Contudo, você já deve estar convencido(a) que eu não jogo nesse time. Estou mais para zagueirão da equipe de Italo Calvino, em “Por que ler os clássicos?”, no qual ele escreve que chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.
Ao contrário do que crê o ilustre mestre que acompanho nas redes, para mim os livros são, sim, objetos sagrados, à semelhança dos antigos talismãs – ainda que não sejam clássicos. E isso porque além de ser leitor voraz, sou assumidamente um bibliófilo. Coleciono livros.
Ora, convenhamos: você já viu como um colecionador arquiva seus selos? E com que zelo armazenam e conservam canetas e relógios aqueles que os colecionam? Um colecionador de carros por acaso deixa de lavá-los e poli-los com frequência quase obsessiva-compulsiva? É claro que não! Assim sendo, por que raios sendo um bibliófilo eu deveria grifar e escrever nos meus livros? Não consigo. É mais forte do que eu. Aliás… estou mentindo. Perdoe-me! Já grifei alguns livros num passado recente. Mas tenho uma boa justificativa: meti sem dó o marca-texto em livros teóricos enquanto procurava excertos para meus artigos acadêmicos e para minha dissertação de mestrado. Ainda assim, admito, eu o fiz com pudor. Todavia, era uma questão de necessidade – a qual não observo quando leio literatura.
Quer dizer… estou mentido. De novo! Desculpe-me. Porque nos últimos tempos, quando leio literatura, tenho sentido necessidade de rabiscar os livros. Não só de grifá-los, mas também de escrever nas margens. Sério. Só que tenho conseguido me conter. Talvez seja o Rivotril – ou, talvez, meu íntimo berrando em favor do sentimento de preservação do talismã.
Por isso, desde 2015, criei o hábito de fotografar as páginas de livros nas quais encontro frases inspiradoras ou excertos relevantes. E tornei-me, para além de colecionador de livros, um colecionador de trechos de livros.
Guardo não propriamente as fotos; digito os trechos fotografados, um a um, e os arquivo em documentos eletrônicos devidamente identificados pelo título do livro, o nome do(a) autor(a) e o ano de leitura. Depois, aloco-os em diretórios por autor(a), separados em duas pastas: ficção – subdividida em prosa e poesia – e não ficção. Tudo fica armazenado em meu computador, na nuvem e, por via das dúvidas, em um HD externo (minha psiquiatra garantiu-me que eu não tenho TOC, antes que você pense em me julgar).
A propósito desse hábito, fiquei positivamente surpreso quando descobri que a escritora Annie Ernaux também fazia isso – ou já tenha feito isso em algum momento da sua vida. Em “O Lugar”, escreve ela que, quando jovem, lia a “verdadeira” literatura e copiava frases e versos que, acreditava, exprimiam minha “alma”, o indizível da minha vida. Só por isso ela já merecia mesmo o Nobel de Literatura.
Da minha parte, adoraria conviver com mais gente como Annie Ernaux. Mas a realidade é que só tenho cruzado com pessoas que grifam e anotam nos livros. Em favor dessa atitude, argumentam quase como o professor das redes sociais: o livro anotado, na verdade, é um legado para futuras gerações – além de objeto ainda mais valioso em caso de estudo e/ou futuras releituras.
Encorajado ou não por esse povo, fato é, que, confesso, uma comichão tem crescido em mim – e me assustado deveras.
Imagine você que no momento que escrevo estas linhas estou terminando a leitura do épico Os Irmãos Karamázov, trambolhão de mil páginas que até aqui me rendeu cerca de duzentos registros de excertos num documento que já tem mais de quarenta páginas. Seria muito menos trabalhoso grifá-lo? Sem dúvida! Mas como, passada a comichão, dar conta de um coração dorido por ter maculado a obra-prima de Fiódor Dostoiévski? Não, meu amigo, minha amiga, nem o Rivotril me salvaria.
Por isso, mesmo sendo um homem de fé duvidosa, o que tenho feito – às escondidas – é apelar ao metafísico e caprichar na oração do Pai Nosso, pedindo aos céus para não me deixar cair em tentação. Porque, garante-me uma amiga bibliófila espiritualizada, só mesmo Ele pode nos livrar de todo o mal – e também aos pobres livros, que, coitados, não merecem ser maltratados por gente sem coração e com um lápis em chama nas mãos.