Já está no ar minha crônica de março de 24 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo a vida depois dos 40 anos a partir de excerto da novela “Diário de um Homem Supérfluo”, de Ivan Turguêniev.
Confira!
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O som da vida
Por Ricardo Mituti
Um contador de causos narrou-me a seguinte história: quando um jovem estava com quinze anos, um psiquiatra lhe disse que não chegaria aos quarenta se continuasse tão nervoso. Ele sequer podia votar e já sofria dos nervos.
Ao completar dezessete, achou que morreria. Por quê? Não sabia. Fato é que encasquetou que partiria antes de tirar carteira de motorista – já que se alistar no Exército não era algo que lhe deixava tão entusiasmado.
Passou ileso pelos dezessete e pelos dezoito, mas aos dezenove teve uma crise de pânico. Ah, pensou, errei por dois anos. É agora que morro. Sobreviveu.
Casou-se e teve filhos aos vinte e poucos, pois, no fundo, jamais se esquecera da previsão daquele psiquiatra soturno. Vai que…
Os trinta correram bem – salvo uma pedra no rim, expelida naturalmente. Quando estava com quase quarenta, disse à esposa ter começado a ouvir vozes, como se alguém lhe soprasse ideias nos ouvidos. De imediato, achou que havia perdido a sanidade. Depois, passou a dormir com um caderno e uma caneta ao lado da cama, para registrar o que lhe chegava misteriosamente quase sempre durante a madrugada.
Numa dessas noites, dias antes do quadragésimo aniversário, acordou sobressaltado: alguém, supostamente, havia lhe ditado versos de um poema. Eram versos desconexos, mas com rimas ricas e palavras rebuscadas. Ele, pouco afeito à arte literária, só não chegou a pensar se tratar de psicografia porque era ateu convicto.
Pouco tempo depois e ele tinha um poema pronto, que versava sobre o tempo. Luxo puro, até título a obra possuía: o som da vida. Ora, mas o que é o som da vida? E a vida lá tem um som que a defina? Só se for o som da respiração. Sim, porque quando morremos esse som cessa, filosofava consigo mesmo.
Foi só pensar nisso e saltou-lhe à lembrança o psiquiatra sombrio. Seria algum sinal? Será que sua hora se aproximava? Não, não acredito em sinais, estabeleceu. E como não encontrava respostas para tantas perguntas, achou por bem voltar ao tal psiquiatra. Talvez a ciência tivesse alguma explicação.
Durante a consulta, recordou a previsão recebida aos quinze. O médico, já vivido, sorriu. A questão é que você chegou aos quarenta, disse-lhe o doutor. Já ouviu falar em Turguêniev? Não. É um autor russo que escreveu um livro chamado “Diário de um Homem Supérfluo”. Há uma frase nesse livro que resume o que está acontecendo com você: enquanto vive, o homem não sente a própria vida; depois de algum tempo, como um som, ela se torna audível para ele, recitou. Meu caro, prosseguiu o velho homem, as vozes que você diz ouvir são o som da vida; da vida que você agora nota e sente passar com mais rapidez. Já o poema é fruto de sensibilidade, inspiração e intuição, quase sempre desconhecidas na juventude, quando costumamos viver mais intensamente e não sentimos a própria vida, como diria o escritor. A verdade, meu filho, sacramentou o médico, é que dos quarenta em diante a vida até então muda se torna audível.
Se essa história é real eu não sei. Por via das dúvidas, eu, que já passei dos quarenta, vou devorar Turguêniev, procurar uma boa fonoaudióloga e deixar caderno e caneta ao lado da cama. Vai que…