Crônica: O acidente

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Crônica: O acidente

Daniela havia acabado de pedir para ir embora. Estava preocupada com Benício. Ele estava na casa do avô havia mais de seis horas.

Sabíamos que ele não comeria. Mas isso não era um problema. O problema era a intuição da mãe.

Já tínhamos terminado o café. Nos pratos, apenas as migalhas dos bolos e tortas que havíamos pedido como acompanhamento.

Conversávamos animadamente com um casal de amigos baianos, com quem tínhamos ido a um musical.

Daniela insistiu para ir embora. Nossa amiga tentou tranquilizá-la. Disse que Benício devia estar curtindo o avô – e vice-versa.

Foi quando meu celular tocou. O identificador de chamadas mostrou o nome e o número do telefone da esposa do meu sogro.

Confesso que levei um baita susto. Já havia tido provas da assertividade da intuição da minha esposa. Mas, com esse nível de precisão, jamais.

Passei o telefone para ela, sem atendê-lo. Ela recusou. Pediu que eu atendesse a madrasta. Também neguei. Insisti para que ela o fizesse. E ela voltou a recusar. Disse que algo havia acontecido e que não atenderia. Não tive outra alternativa senão ceder.

Atendi. A esposa do meu sogro tentou ser natural. Mas meu senso paterno coincidia com a intuição de minha esposa.

Madu perguntou se já estávamos a caminho. E eu respondi com uma pergunta: “Aconteceu alguma coisa?”

Daniela estava pálida e mexia nervosamente no pescoço, sem tirar os olhos de mim. Eu mirava nossos amigos, para transparecer uma naturalidade que também me faltava.

Do outro lado da linha, Madu tentou me acalmar. Disse que havia ocorrido um pequeno acidente doméstico com meu sogro, e que minha cunhada iria levá-lo ao pronto-socorro. Como ela ficaria sozinha do Benício, gostaria de saber se iríamos nos demorar.

Acidente doméstico é algo um tanto relativo. Um pé cortado por cacos de um copo de vidro quebrado é um acidente doméstico. Mas um dedo aberto por uma tesourada também o é.

Comecei a suar frio. Tentei continuar o diálogo sem que Daniela compreendesse o que havia ocorrido no apartamento do pai. Mas foi difícil encontrar palavras.

Perguntei para Madu se havia acontecido algo com Benício. Ela negou, prontamente. Isso me aliviou um pouco, mas não por completo. E quanto ao meu sogro?

Daniela perguntava do filho e do pai. O pescoço dela já estava vermelho. Os olhos faiscavam. Ela queria notícias. Já.

O avô do Benício estava bem, disse-me a esposa dele. Mas um dos dedos da mão direita havia sido navalhado pela lâmina afiada de uma tesoura aparentemente vagabunda. O sangue não parava de jorrar, e a dor crescia.

Ouvi um burburinho ao fundo da ligação. Não sabia se meu sogro chorava, gemia, ria ou resmungava. Depois, ouvi a voz de Benício se aproximar do telefone. Madu passou o aparelho para ele.

“Filhinho, o que houve? Você machucou o vovô?”

Benício não respondeu. Como não chorava, tranquilizei-me um pouco mais – embora eu ainda não tivesse entendido bem o que ocorrera no apartamento.

“Papai, o vovô Ru cortou o dedo com a tesoura, e a tia Vivi vai levar ele no médico.”

Senti que podia repetir para minha mulher o que acabara de ouvir. Mas, em vez de tranquilizá-la, minha atitude a preocupou ainda mais.

Daniela achou que Benício havia pegado uma tesoura sem que ninguém visse. Ao ser flagrado, recusou-se a entregar o objeto. Possivelmente ao avô. Que, na ânsia de proteger o neto da lâmina, acabou ferido. Embora não confirmada, esta era uma hipótese bastante plausível.

Madu ainda estava do outro lado da linha, falando com Benício, com o marido e com a filha. Eu disse que estávamos a caminho e desliguei.

Fomos para o apartamento do meu sogro com o coração apertado. Ainda que nosso filho estivesse bem – ao menos aparentemente -, não gostaríamos de ter nossa hipótese confirmada.

Benício não poderia ter pegado uma tesoura sorrateiramente. Benício também não poderia ter se recusado a devolvê-la ao avô. Muito menos ter machucado o coitado, ainda que sem intenção.

Chegamos tensos ao local, à espera de esclarecimentos. Madu não soube dar detalhes, pois não estava no mesmo ambiente que o marido e Benício no momento do acidente. Mas nosso filho estava bem. E isso foi um grande alívio.

Vovô Rubens ainda estava no hospital. Por mensagens, minha cunhada mandava notícias. Dois cortes no dedo médio, com dois pontos em cada. Saldo da brincadeira com a tesoura: quatro pontos e um dedo enfaixado.

Puxei Benício de canto para tentar entender o que realmente havia acontecido.

“Papai”, ele começou. “O vovô Ru se machucou com a tesoura. Mas eu falei pra ele tomar cuidado, só que ele não tomou.”

Tive de conter uma risada diante de tanta pureza.

“Mas, filho, foi você quem cortou o dedo do vovô?”

“Nããããão, papai”, retrucou meu filho, com a inocência que lhe é peculiar. “Foi a tesoura.”

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