Já está no ar meu conto (num misto com crônica) de setembro de 22 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, conto a história de um homem que viveu uma vida poética – mais no sentido metafórico que no lírico -, até que uma inesperada e improvável pedra surgiu no meio do seu caminho.
Confira!
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Uma vida em versos
Por Ricardo Mituti
Sempre falara por versos. Até mesmo nas poucas contendas nas quais se envolvera, diziam, jamais deixara de evocar um poeta ou uma poetisa.
A primeira palavra que pronunciou, reza a lenda, foi “batatinha”, com meses. Acharam uma graça, ainda que não tenham entendido patavinas de onde raios saíra o pequenino tubérculo. Mas foi quando, tempos depois, balbuciou o “quando nasce / espalama pelo chão”, assim, trocando o erre pelo ele, é que o espanto geral se instaurou. Sobretudo por parte dos pais, que mal haviam terminado a saudosa quarta série.
Numa festinha de Dia das Mães, ainda no Ensino Fundamental, declamou Quintana de cabeça, para chororô geral da nação: MÃE… / São três letras apenas, / As desse nome bendito: / Três letrinhas, nada mais… / E nelas cabe o infinito / E palavra tão pequena / Confessam mesmo os ateus / És do tamanho do céu / E apenas menor do que Deus! // Para louvar a nossa mãe, / Todo bem que se disser / Nunca há de ser tão grande / Como o bem que ela nos quer. // Palavra tão pequenina, / Bem sabem os lábios meus / Que és do tamanho do CÉU / E apenas menor que Deus!
Na pré-adolescência, costumava arrebatar corações incautos com Adélia Prado – que, lembram, impactava mais do que os sedutores e profundos olhos verdes: Amor é a coisa mais alegre / amor é a coisa mais triste / amor é coisa que mais quero. / Por causa dele falo palavras como lanças. / Amor é a coisa mais alegre / amor é a coisa mais triste / amor é coisa que mais quero. / Por causa dele podem entalhar-me, / sou de pedra-sabão. / Alegre ou triste, / amor é coisa que mais quero.
Usou desse mesmo talento – ou seria astúcia? – quando conseguiu levar a menina amada para a cama: Quando / com minhas mãos de labareda / te acendo e em rosa / embaixo / te espetalas / quando / com meu aceso facho e cego / penetro a noite de tua flor que exala / urina / e mel / que busco eu com toda essa assassina / fúria de macho? / que busco eu / em fogo / aqui embaixo? / senão colher com a repentina / mão do delírio / uma outra flor: a do sorriso / que no alto o teu rosto ilumina? “Um Sorriso. Ferreira Gullar”, teria anunciado, ainda ofegante, mirando o branco do teto.
Casaram-se, como não poderia deixar de ser. Ao final da cerimônia, igreja lotada, pediu o microfone ao padre após beijar a noiva. Olhos nos olhos da agora esposa, foi meio previsível, é verdade, mas seria impossível, naquela circunstância, não recorrer a Vinicius: De tudo, ao meu amor serei atento / Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto / Que mesmo em face do maior encanto / Dele se encante mais meu pensamento. // Quero vivê-lo em cada vão momento / E em seu louvor hei de espalhar meu canto / E rir meu riso e derramar meu pranto / Ao seu pesar ou seu contentamento. // E assim, quanto mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama // Eu possa me dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure.
Quando, já em companhia da numerosa família, voltava à terra-natal, nos cafundões desse Brazilsão, recordava Manoel de Barros para lamentar o descaso das autoridades diante da degradação local: Acho que lugar desprezado é mais triste do que abandonado. No retorno para casa, quase sempre melancólico, invariavelmente filosofava com Pessoa: Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro.
O humor só melhorava mesmo quando a criançada aprontava e virava a casa pelo avesso. E isso, provavelmente, por ter sido criança em tempos difíceis: Entre os adultos, antigamente, a criança não passava / de um pequeno joguete. Não chegava a ser incômoda, / porque nem mesmo tinha o valor de incomodar. “Cora Coralina, meus filhos”, informava, em tom permissivo. E recorria à própria poetisa dos reinos de Goiás ao afagá-los, um a um, com expressão de amor da qual não desfrutara. Não são os filhos que nos devem. São os pais que devem a eles, murmurava, de si para consigo mesmo.
Costumava dizer que tinha uma visão lírica da vida. Talvez por isso não parecesse sofrer nem um pouco com as dívidas que só aumentavam, dia após dia, ano após ano. “Já diria o grande Manuel Bandeira, em ‘Testamento’”, proferia, solene, “O que não tenho e desejo / É que melhor me enriquece.”
E assim a vida corria, poeticamente – pelo menos em sentido metafórico. Até que, na meia-idade, a despeito da boa saúde, uma inesperada e fatal constipação convocou a dona Morte. Consta que se foi por complicações causadas por um descomunal fecaloma – ou, em bom português, uma imensa pedra de cocô que o entupiu para toda a eternidade.
Que tristeza! Só não foi pior porque felizmente ainda tivera tempo – e presença de espírito, sem trocadilho – para deixar orientações expressas e irrevogáveis sobre o último desejo: que em seu epitáfio gravassem o bom e velho Drummond.
E é por isso que lá, nos desprezados cafundões, seus restos mortais jazem impávidos, sob o mármore da lápide categórica: No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.