Já está no ar minha crônica de março de 23 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre indiferença e relativismo moral a partir do encontro de dois gigantes da literatura mundial: Albert Camus, no seu “O Estrangeiro”, e Milan Kundera.
Confira!
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Quando a turma de Kundera livrou a cara de Camus e me levou a nocaute
Por Ricardo Mituti
Há pouco mais de 80 anos, o filósofo e escritor franco-argelino Albert Camus lançou “O Estrangeiro”, uma das obras mais importantes e desafiadoras da literatura mundial. E desafiadora porque protagonizada por aquele que, para mim, é o mais indiferente dos homens que já conheci, pelo menos até agora.
Posso garantir que relutei, e muito, para não julgar Meursault, o dito-cujo. Mas tenho dificuldade de engolir alguém que se mostra indiferente à morte da própria mãe e no dia seguinte ao enterro vai à praia se divertir, assiste a uma comédia e ainda encontra forças para transar.
Talvez por ter causado certa repugnância não apenas em mim, Meursault, julgado literalmente na obra, é defendido fora das páginas por ninguém menos que o próprio Camus. Tempos depois da publicação do livro, o autor teria escrito o seguinte: Eu resumi “O Estrangeiro” com uma observação que admito ser altamente paradoxal: “Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte”. Só quis dizer que o herói do meu livro é condenado porque não joga o jogo.
Quando tomei conhecimento dessa defesa, confesso, fiquei meio na bronca com Camus. Até porque o protagonista de “O Estrangeiro” não é frio somente com a vida alheia; sua própria vida parece não lhe ser tão valiosa. Eis o que proclama o fulano em dado momento da narrativa: (…) todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que tanto faz morrer aos trinta ou aos setenta anos, pois em qualquer dos casos outros homens e outras mulheres viverão, e isso durante milhares de anos. Afinal, nada mais claro. Hoje, ou daqui a vinte anos, era sempre eu quem morria. Neste momento, o que me perturbava um pouco no meu raciocínio era esse frêmito terrível que sentia em mim ao pensar nesses vinte anos que faltavam para viver. O que tinha de fazer era sufocar esta sensação, imaginando o que seriam os meus pensamentos daqui a vinte anos, quando, apesar de tudo, chegasse a hora. A partir do momento em que se morre, é evidente que não importa como e quando.
De tão indiferente que aparenta ser – a ele tudo tanto fazia –, Meursault chega mesmo a provocar raiva e algum asco. E, não nego, a mim ele quase se materializa numa daquelas figuras contra quem desejamos avidamente apontar o dedo, espuma na boca, perdigotos no ar, condenando-a por atos ou falas que vão de encontro a valores, princípios e à própria ética (e se você nunca sente ou sentiu essa vontade, é porque ou se desumanizou por completo, ou foi contaminado pela tal positividade tóxica ou, ainda, porque é coach).
A despeito de Camus ser um dos grandes da literatura, permaneci por muito tempo incomodado com a história de Meursault só não ter “jogado o jogo”. Pô, Camus, não fode! É muito mais do que isso! E eu já estava quase cancelando o ilustre escritor-pensador quando, para sorte dele (ou seria para a minha?), emendei a “O Estrangeiro” a leitura de “A Cortina”, de Milan Kundera, um volume de ensaios sobre a arte do romance.
Foi então que Kundera, senhoras e senhores, chamou-me para a briga a fim de aliviar a barra de Camus. Aliás, sejamos justos: não foi apenas Kundera quem me convocou para subir ao ringue. Em seus ensaios, o escritor tcheco recorre a outros autores para mostrar como o romance (com a devida licença poética, amplio de “o romance” para “a literatura”) nos resta como o último observatório do qual se pode abraçar a vida humana como um todo, reproduzindo palavras do romancista argentino Ernesto Sabato, um dos parceiros de Kundera na luta desleal que o tcheco provocou.
Abraçar a vida humana como um todo. Hum! Eu e meu maldito perfeccionismo eventualmente nos esquecemos que “a vida humana como um todo” inclui o ser indiferente, frio e insensível. E tome jab na cara, Ricardo.
Não satisfeito com a desigualdade numérica a seu favor, Milan Kundera também evoca Flaubert, autor interessado em “adentrar a alma das coisas”, para explicar, com suas próprias palavras, o que cabe ao romance intentar – e, com isso, o tcheco acerta-me um cruzado: toda invenção romanesca que se preza é um ato de conhecimento, capaz de revelar um aspecto ainda desconhecido da “natureza humana”.
Tonto, porém ainda em pé, insisto que Camus não deveria ter contemporizado a situação de Meursault – de novo o tal “não ter jogado o jogo”. Pô, Camus! O cara também matou um homem a troco de nada e pôs a culpa no sol. Não dá para aliviar com ele…
Kundera, bailando no ringue à minha frente, à frente também de Sabato e Flaubert, invoca então o romancista inglês Henry Fielding, o pai de “Tom Jones”, para me pôr a nocaute com um direto no queixo: Ele [Fielding] tenta definir essa arte [a poética do romance], isto é, determinar sua razão de ser, delimitar o domínio da realidade que ela quer esclarecer, explorar, perceber: “O alimento que propomos aqui a nosso leitor não é outro senão a natureza humana”.
Primeiro round, ainda, e o juiz já abre contagem. Mesmo com os olhos praticamente fechados, inchados pelas pancadas que levei, sou capaz de divisar na plateia, a essa altura ensandecida, a figura de Meursault, inodoro, incolor, insípido e indiferente ao sangue que jorrava de meu nariz esmigalhado. Nem para rir da minha desgraça esse filho da puta foi capaz.