Já está no ar minha crônica de maio de 23 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre a improvável autoajuda na poesia de Charles Bukowski, o “Velho Safado”.
Confira!
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A improvável autoajuda em Bukowski
Por Ricardo Mituti
Ela detesta autoajuda. Não gosta de coaches. De palestras motivacionais, então, passa longe. Mentor, pra ela, é papo de espírita. Paulo Coelho? Nem pensar! Tem ojeriza a livros caça-níqueis de receita pronta, do tipo “5 passos”, “10 dicas”, “7 hábitos” e por aí afora. Sequer sabe seu signo – ainda que, é verdade, também nunca se lembre do seu tipo sanguíneo. Por essas e outras, afirma, surpreendeu-se ao ler Bukowski.
Comentou que esperava encontrar era muita sacanagem na poesia do “Velho Safado”. E de fato encontrou-a, claro. Mas encontrou, também, muito mais do que isso. Encontrou aquilo do qual sempre fugiu, mas, segundo concluiu, à maneira peculiar, visceral, crua e destemida que só mesmo um cara como Charles Bukowski seria capaz de conceber.
Pedi exemplos – porque, confesso, quase nada conhecia da obra bukowskiana. E ela, sabendo que coleciono frases e excertos de livros, apresentou-me algumas pérolas.
Começou por esta: (…) algumas pessoas nunca enlouquecem. / que vidas verdadeiramente horrendas / elas devem levar. Do poema “Algumas pessoas nunca enlouquecem”, disse-me.
Interessante – comentei. – Tem mais?
Tem sim: conforme o / espírito / decai / a / forma / aparece. Este chama-se “Arte”, informou.
Bacana, hein? Outro?
Claro! Ouça este: há coisas piores do que / ficar sozinho / mas perceber isso / costuma levar décadas / e quase sempre / quando você percebe / é tarde demais / e não há nada pior / do que / tarde demais. “Sem Dúvida”.
Muito bom, sem dúvida – brinquei. – Mas você havia comentado que Bukowski te surpreendeu com alguma coisa que lembrava autoajuda. Era isso, não?
Ela confirmou. Mas deixou claro que não se tratava dessa autoajuda barata, à venda em banca de jornal ou disponível em perfis de charlatões e charlatãs do Instagram; era um negócio que parecia transbordar de algum órgão do autor – e este órgão não era o pênis.
Dê-me exemplos, por favor – pedi.
Você manda: invente-se e então reinvente-se, / não nade no lodo. / invente-se e então reinvente-se, / fuja das garras da mediocridade e da / autocompaixão. // invente-se e então reinvente-se, / mude seu tom e sua forma de modo que nunca / consigam / encontrar você. // recarregue-se / aceite a continuidade / mas apenas nos termos que você inventou. / e reinventou. // seja autodidata. // invente a vida, / ela é você, / a história do passado e / a presença do presente. / não há nada mais, / nada. “Sem Líderes”.
Eita! Isso é legal, hein? Mas, convenhamos, está mais pra algum tipo de filosofia do que pra autoajuda, não acha?
Pode ser, ela respondeu. Mas há outras duas que são autoajuda raiz. E sabe o que é pior? Eu gostei! Ouça. A primeira se chama “O Coração Risonho”: sua vida é sua vida. / não deixe que ela seja espancada em úmida / submissão. / fique atento. / existem saídas. / há luz em algum lugar. / pode não ser muita luz mas / ela vence a / escuridão. / fique atento. / os deuses vão te oferecer / chances. / reconheça e pegue essas chances. / você não pode vencer a morte mas / você pode vencer a morte / na vida, / às vezes. / e quanto mais você / aprender a fazê-lo, / tanto mais luz / haverá. / sua vida é sua vida. / conheça sua vida enquanto a / tem. / você é maravilhoso / os deuses esperam para se deleitar / com / você.
Hum… E a outra?
A outra é “Lance os Dados”: se você for tentar, vá com / tudo. / caso contrário, nem comece. // se você for tentar, vá com / tudo. / isso pode significar perder namoradas, / esposas, parentes, empregos e / talvez sua mente. // vá com tudo. / pode significar não comer por 3 ou / 4 dias. / pode significar congelar num / banco de parque. / pode significar prisão, alcoolismo, / pode significar escárnio, / zombaria, / isolamento. / isolamento é a dádiva, / o resto todo é um teste da sua / fibra, / do quanto você realmente quer / fazê-lo. / e você o fará / enfrentando a total rejeição e a / pior das chances / e será melhor do que / qualquer outra coisa / que você possa imaginar. // se você for tentar, / vá com tudo. // não há sentimento / igual. / você estará sozinho com os / deuses / e as noites vão arder em / chamas. // faça, faça, faça. / faça. // com tudo / com tudo. // você vai cavalgar a morte direto até o / inferno, / sua risada perfeita, / a única boa luta / agora.
Veja bem – comecei, querendo parecer professoral –, para mim, isso extravasa, e muito, o conceito de autoajuda. Não posso dizer que Bukowski escreve com o fígado porque, do pouco que sei sobre sua biografia, talvez ele sequer tivesse fígado quando escreveu esses poemas. Mas a verdade é que ele toca porque escreve com o coração. E eu aprendi que, quando escrevemos com o coração, tocamos o coração do outro. Só acho deveras curioso que você, logo você, que abomina esse tipo de conteúdo, esteja se derretendo pelo Velho Safado.
Mas ela tinha uma carta na manga: Bukowski era autêntico – cravou. – Escrevia sem meias-palavras. E não tinha medo de ser “anti”. Não estava preocupado em agradar. Não se preocupava se seria cancelado, como se diz hoje. Aliás, se estivesse vivo, teria escrito o melhor dos manifestos contra esse mundo fake e hipócrita que estampa as redes sociais. E sabe como teria feito isso? Justamente com uma espécie de antiautoajuda. Algo que só um cara da estirpe dele poderia fazer com tamanha maestria.
Mostre-me, pedi.
Você manda. “O gênio da multidão”, nomeou. Há uma dose suficiente de ódio, / deslealdade, / violência, / Absurdidade no ser humano / médio / Para abastecer qualquer exército a qualquer / momento. / E Os Melhores No Assassinato São Aqueles / Que Pregam Contra Ele. / E Os Melhores No Ódio São Aqueles / Que Pregam AMOR / E OS MELHORES NA GUERRA / – FINALMENTE – SÃO AQUELES QUE / PREGAM / PAZ // Os Que Pregam DEUS / PRECISAM De Deus / Os Que Pregam PAZ / Não Têm Paz. / OS QUE PREGAM AMOR / NÃO TÊM AMOR / CUIDADO COM OS PREGADORES / Cuidado Com Quem Sabe Tudo. // Cuidado / Com Quem / Está SEMPRE / LENDO / LIVROS / Cuidado Com Quem Detesta / Pobreza Ou Se Orgulha Dela // CUIDADO Com Os Rápidos Em Louvar / Pois Precisam De LOUVOR Em Retribuição / CUIDADO Com Os Rápidos Em Censurar: / Eles Temem Aquilo Que / Não Sabem / Cuidado Com Os Que Buscam A Constante / Multidão; Eles Não São Nada / Sozinhos // Cuidado / Com O Homem Médio / Com A Mulher Média / CUIDADO Com Seu Amor // Seu Amor É Médio, Busca / O Médio / Mas Há Gênio Em Seu Ódio / Há Gênio Suficiente Em Seu / Ódio Para Te Matar, Para Matar / Qualquer Um. // Não Querendo A Solidão / Não Entendendo A Solidão / Tentarão Destruir / Qualquer Coisa / Que Divirja / Da Deles // Não Sendo Capazes / De Criar Arte / Nunca Irão / Entender a Arte // Vão Considerar Seu Fracasso / Como Criadores / Como um Mero Fracasso / Do Mundo // Não Sendo Capazes De Amar Plenamente / ACREDITARÃO Que Teu Amor É / Incompleto / E ENTÃO VÃO TE / ODIAR // E Seu Ódio Será Perfeito / Como Um Diamante Brilhante / Como Uma Faca / Como Uma Montanha / COMO UM TIGRE / COMO Cicuta // Sua Mais Refinada / ARTE.
Cuidado com os pregadores. Cuidado com quem sabe tudo, repeti, refletindo. E eu, logo eu, que tenho os dois pés atrás com esse povo que sabe tudo e também não gosto de coaches; detesto autoajuda; passo longe de palestras motivacionais; mentor, pra mim, é papo de espírita; Paulo Coelho? Só uma vez, pra conhecer (e me arrependi profundamente de ter levado a leitura até o final – maldito TOC!); tenho ojeriza a livros caça-níqueis de receita pronta do tipo “5 passos”, “10 dicas”, “7 hábitos” e por aí afora; não acredito em astrologia – e também não sei meu tipo sanguíneo –, corri para a livraria mais próxima e comprei todos os Bukowskis que encontrei pela frente.