Já está no ar minha crônica de maio de 22 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre as paranoias que podem acometer leitores(as) incautos(as) ao mergulharem de cabeça numa ficção pra lá de real. E tudo isso a partir do aflitivo romance “Angústia”, do escritor alagoano Graciliano Ramos.
Confira!
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Angustiado
Por Ricardo Mituti
Um amigo apaixonado por livros telefonou-me dia desses para fazer terapia comigo. Ele acha que eu posso dar conselhos lítero-psicológicos só porque trabalho com o Laboratório de Leitura. E de nada adianta explicar que não sou terapeuta (nem biblioterapeuta), que a literatura toca cada pessoa de uma forma, que não é tudo o que ele lê que ele pode ou deve exportar para a vida real e bla-bla-bla. O amigo tem em mim um tipo de tábua de salvação psicoliterária – seja lá o que isso possa significar – e acredita firmemente que eu posso ajudá-lo a compreender como ele pode ou deve conciliar seus afetos e sentimentos, a literatura de ficção e as relações que mantém fora das páginas.
Contava-me ele, em tom de prolegômeno, que muitos livros já o fizeram sorrir; alguns outros levaram-no às lágrimas, de alegria e de tristeza. Houve, ainda, os que o deixaram apreensivo, os que lhe causaram repulsa e até os que provocaram crises de ansiedade, pânico e agorafobia. Mas que nunca, em anos e anos de leitura, havia sentido tamanho mal-estar ou flertado tão perigosamente com a paranoia como aconteceu quando conheceu Luís da Silva.
Luís da Silva, se você não sabe, é o narrador-protagonista do sufocante “Angústia”, obra-prima do autor alagoano Graciliano Ramos, famoso por “Vidas Secas” e “São Bernardo”.
Da minha parte, bem sei que a literatura de ficção é aestética, despertadora de afetos e que muitas vezes emula a vida – ou é a vida que emula a arte, vá lá. Entretanto, esta foi a primeira vez que ouvi um desfecho tão surpreendente como este que narrarei a seguir.
Se você também não sabe – e sendo bastante cuidadoso para não dar spoiler –, “Angústia”, em síntese, fala sobre uma relação amorosa malsucedida. Essa relação desencadeia, entre outros acontecimentos, cenas de machismo grotesco, ciúme, traição, perseguição, auto-humilhação, medo e arrependimento. Tudo num ritmo alucinante, quase frenético, que ora retrata o presente, ora recorre ao fluxo de consciência do passado do perturbado Luís da Silva.
Meu amigo – cuja identidade, claro, eu preservarei – disse-me que “Angústia” o incomodou logo nas primeiras páginas devido à forma autodepreciativa com que o protagonista se apresenta: um funcionário público pobretão e desgostoso da vida que, a despeito de ter apenas 35 anos, bebe, fuma e vive agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis.
Percebi, ao ouvi-lo recordar essa passagem, uma das lições mais básicas que ensina a boa literatura: forma e conteúdo mantêm-se tão conectados na referida obra de Graciliano que meu interlocutor foi contaminado pela agitação de Luís da Silva já na largada, e isso o deixou em alerta para o que viria mais adiante.
Estar em alerta, para uma pessoa ansiosa como esse meu amigo, é intuir que algo ruim pode acontecer. Talvez por isso, confessou-me, ele tenha lido boa parte de “Angústia” em pé. Fiquei com cãimbras só de imaginar!
Mas meu amigo prosseguiu. Admitiu ter sentido palpitações quando Marina, a mulher desejada pelo narrador, trocou-o pelo endinheirado Julião Tavares e desencadeou no ex, a partir de então, uma existência obsessiva. “Não porque eu seja um homem ciumento, Ricardo – e, claro, muito menos porque eu imaginasse ser trocado por minha mulher só porque nosso extrato bancário nunca sai do vermelho para o azul…”, revelou-me ele, melancólico.
Não imaginava aonde aquela conversa poderia chegar. Até que meu amigo contou-me, aos prantos, que não conseguia mais dormir à noite. Que tinha pesadelos horríveis com a esposa. Primeiro, ela o traía com o vizinho bonitão do 904 (que, no sonho – ou melhor, no pesadelo –, também chamava-se Julião, como o antagonista de Luís da Silva). Depois, ela aparecia maquiada e em trajes mínimos dizendo que ia jantar com a irmã num sábado à noite e só voltava para casa ao amanhecer, invariavelmente de cabelos molhados. Ah, e também tinha o pesadelo com o celular da mulher, que a cada dois ou três minutos vibrava um nome de homem diferente.
“Rapaz, são só sonhos. Você se deixou influenciar demais pelo que leu”, contemporizei, tentando trazê-lo de volta à realidade. “Como nos ensina o próprio Luís da Silva – ainda que ele não seja o melhor dos exemplos, reconheço –, como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Não acha?”
Não, ele não achou. E eu soube, dias depois da nossa conversa, que meu amigo decidiu se divorciar assim, sem mais nem menos, depois de mais de trinta anos de matrimônio, por simplesmente não ter conseguido lidar com a história angustiante de Luís da Silva, Marina e Julião Tavares. Ou melhor, por ter aberto as portas de sua vida real para a ficção graciliana.
Triste, não acha? Eu acho. Por sorte, ainda que eu seja um leitor voraz, sempre soube separar as coisas: ficção é ficção; realidade é realidade. Sou muito bem casado, amo minha esposa, e não é porque eu também já tive crise de ansiedade lendo Dostoiévski, ou porque chorei copiosamente com Valter Hugo Mãe, ou, ainda, porque sonhei que caí de uma escada e sofri o mesmo acidente de Ivan Ilitch que…
– Ô Daniela, quem é esse tal de Cristiano que não para de te telefonar, hein?