Já está no ar minha crônica de julho de 23 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre as muitas facetas da relação entre pais e filhos a partir do clássico “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry.
Confira!
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O dinossauro e o Pequeno Príncipe
Por Ricardo Mituti
Meu celular tocou enquanto eu terminava de arquivar alguns excertos de “O Pequeno Príncipe”. Do outro lado da linha, Benício. Era domingo, hora do almoço, e ele havia ido às compras com a mãe. Estava agitado. Perguntou-me se eu iria brincar com ele quando chegasse. E eu respondi que sim, claro! Aquele domingo seria só dele. Mas Benício não se satisfez. Queria saber do que eu gostaria de brincar. E eu disse que brincaria do que ele quisesse. Era só escolher. Benício escolheu brincar de dinossauro. E perguntou se eu brincaria de dinossauro com ele. Lógico, filho! Quando você chegar a gente brinca de dinossauro, então, tudo bem?
Benício e a mãe chegaram dez minutos depois. E meu filho veio correndo ao meu encontro, sorriso escancarado. Procurava pelo pai que prometera brincar de dinossauro tão logo ele chegasse. Pedi um minuto para terminar o que eu fazia. Só que o tempo, para ele, avança em outro ritmo. E um minuto não tem necessariamente sessenta segundos.
Benício começou a rabiscar no meu bloco de anotações. Desenhou, sobre registros meus, um quadrado retangular e uma cobra triangular. Pediu que eu olhasse. Olhei de relance e o parabenizei. Inevitável foi não recordar o desenho da cobra que havia engolido o elefante, confundido com um chapéu, que ilustra as primeiras páginas da obra-prima de Antoine de Saint-Exupéry. As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar a toda hora explicando, escreveu o autor aviador. Santa sabedoria!
Pedi a Benício que parasse de rabiscar nas minhas anotações. Virei a folha e disse que ele poderia escrever apenas nas páginas que estivessem em branco. Fui ignorado. Depois, Benício pediu para sentar-se no meu colo. E eu o atendi. Começou a perguntar-me, então, com a típica insistência de criança, quando iríamos brincar de dinossauro. Respondi que esperasse só mais um minuto. Um outro minuto. Ele protestou. Arreliou-se. E tentou apertar algumas teclas do computador. Fiquei bravo. Mandei que parasse. Coloquei-o no chão e pedi que esperasse. Disse a ele que, se repetisse aquilo, eu não conseguiria terminar meu trabalho. E que, enquanto eu não terminasse, não poderia parar para brincar de dinossauro com ele.
As crianças devem ser muito tolerantes com as pessoas grandes, pude ler em seus olhos. Era como se houvesse sido eles, aqueles olhos, e não os meus, que tinham percorrido as linhas do livro recém-concluído que repousava sobre minha mesa de trabalho. E não bastasse o olhar perscrutador, Benício verbalizou sua insatisfação. Primeiro, respondeu dizendo que eu havia prometido brincar assim que ele chegasse. Mas que eu não parava de trabalhar. Depois, que eu pedi um minuto duas vezes. E que, mesmo ao final do segundo minuto – na conta dele –, eu não parava de trabalhar. Por fim, perguntou por que eu trabalhava tanto.
Assustei-me com aquela pergunta. Mas não com a pergunta propriamente dita – a despeito de meu filho ter pouco mais quatro anos e já questionar sobre algo que sequer compreende ao certo como funciona e qual é a sua finalidade. Na realidade, penso, assustei-me mais foi com o significado da pergunta. Mas, diria Exupéry, o pequeno príncipe tinha, sobre as coisas sérias, ideias muito diferentes do que pensavam as pessoas grandes. Benício também. E eu lhe respondi, olho no olho, dizendo que trabalhava muito para poder dar a ele as coisas que ele queria ter e fazer. Meu filho devolveu, com amorosa e invejável sinceridade, ausente em muitas pessoas grandes, que tudo o que ele queria era que eu parasse de trabalhar tanto e brincasse mais de dinossauro com ele.
Todas as pessoas grandes foram um dia crianças – mas poucas se lembram disso. Sim, o pai do Pequeno Príncipe tinha (tem, aliás!) razão. Por isso eu parei. Na hora. No tempo de Benício. Porque o tempo de Benício, hoje, é o que há de mais precioso na minha vida. Afinal, meu filho não é para mim um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu tenho muita necessidade dele. E ele de mim. Ainda que muitas vezes eu sequer perceba minha própria ausência, absorto no trabalho, não há dinheiro que, amanhã, poderá comprar o tempo perdido de ontem ou de hoje.
Não quero passar aos olhos dele como um pai igual a cem mil outros pais. Benício me cativou desde quando nos vimos pela primeira vez, e por isso temos necessidade um do outro. Meu filho é único no mundo. E eu quero ser para ele único no mundo também. Porque, no final, o segredo é muito simples – mas as pessoas grandes, envolvidas até as tampas com o ter enquanto essência da vida, parecem não mais enxergar –: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.
Parei, sim. E, para meu filho, vou parar sempre. Porque não quero – e não vou – tornar-me um pai extinto. Feito dinossauro.