Já está no ar minha crônica de julho de 22 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre afetos e diminutivos afetivos a partir do conto “Queridinha”, do escritor russo Anton Pavlovitch Tchekhov.
Confira!
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Por uma vida com mais diminutivos afetivos
Por Ricardo Mituti
Sou um apaixonado pela Língua Portuguesa. Do tipo que usa o tu como pronome pessoal do caso reto na segunda pessoa do singular. Meus amigos diziam que eu o fazia por influência dos santistas, que assim falam – ainda que omitam o “esse” ao final do verbo, ao contrário de mim. E, antes que alguém pergunte, não, eu não sou gaúcho; é só uma questão de admiração pelo beleza do vernáculo, mesmo.
Gosto, também, de quem se apropria do (ou se atrapalha com o) idioma e, voluntariamente ou não, cria neologismos ou brinca com palavras, expressões e frases, seja por talento – como o tinha de sobra o grande Guimarães Rosa, pai de uma espécie de língua portuguesa paralela –, seja por inocência – como por inúmeras vezes fez meu filho, quando pequeno, ao proferir pérolas como “se você deixar o fogo aceso, ele pode desapagar”, “nágueda” (em vez em “nádega”), “papai, você gosta de histórias de assombrassoura?” e “se a abelha não tivesse virada, você não tivia (em vez de “tinha”) pisado nela”.
Lembro-me de um conto do escritor russo Anton Pavlovitch Tchekhov, intitulado “Queridinha”, com o qual me deliciei. Uma fala da protagonista (a Queridinha em questão) ao primeiro marido, com dois diminutivos, estampou um sorriso no meu rosto e aqueceu meu coração – sim, chego a esse ponto: – Como você é bonzinho! – dizia ela com toda a sinceridade, alisando-lhe os cabelos. – Como você é bonitinho!
Eu, que costumo tratar homens e mulheres por queridos e queridas – hábito que trago desde a juventude, por influência do meu saudoso avô paterno e do meu próprio pai –, e, não nego (e você que me lê já sabe), sou um cara melado por natureza, tenho de admitir: a Queridinha dizendo que o marido é bonzinho, alisando-lhe os cabelos e arrematando com como você é bonitinho é, para mim, mais do que enternecedor; é sensual, porém com pureza.
Não que eu tenha predileção por diminutivos, mas a realidade é que eles tornam a coisa mais especial quando empregados de modo afetivo.
Explica o mestre – e ídolo, por óbvio – Evanildo Bechara, gramático e filólogo brasileiro, membro das Academias Brasileira de Letras e de Filologia e representante brasileiro no Novo Acordo Ortográfico, na bíblia “Moderna Gramática Portuguesa”, que os chamados aumentativos e diminutivos afetivos podem traduzir o nosso desprezo, a nossa crítica, o nosso pouco caso para certos objetos e pessoas, sempre em função da significação lexical da base, auxiliados por uma entonação específica (eufórica, crítica, admirativa, lamentativa, etc.) e os entornos que envolvem falante e ouvinte.
Bechara exemplifica – politicalho, livreco, padreco, coisinha, issozinho – e prossegue: dizemos então que os substantivos estão em sentido pejorativo.
Por outro lado, o filólogo explica que a ideia de pequenez se associa facilmente à de carinho que transparece nas formas diminutivas das seguintes bases léxicas: paizinho, mãezinha, queridinha (não sei se ele já leu o conto de Tchekhov, mas que o exemplo é este, juro para você que é!).
Ideia de carinho… Fofo, não acha? Que atire a primeira pedra aquele ou aquela que nunca chamou sua companheira ou seu companheiro de amorzinho ou amoreco (ainda que, neste último caso, haja risco de contestação por interpretação dúbia, considerando-se que amoreco pode ser mais pejorativo do que fofo, no fim das contas).
Mas sigamos. Sendo esta uma crônica, e não um tratado sobre nossa Gramática, achei conveniente fazer toda essa introdução para dizer que muito provavelmente, nunca antes na história deste País, um morto ou uma morta já tenha sido tratado ou tratada no diminutivo. E não o foi de modo pejorativo; muito pelo contrário.
Importante esclarecer, neste ponto, que a fala em questão não dizia respeito ao nome ou à identidade da pessoa, tipo “o Fulaninho, que nos deixou” ou “a Beltraninha que morreu semana passada”. Não! Tampouco transmitia a ideia do lamento pela perda – ou da preocupação com quem fica, como em “Coitadinha da Ciclana! Ela estava tão doente! E agora, quem vai cuidar dos filhinhos dela?” Também não! Definitivamente, parece-me, meus tímpanos tiveram o privilégio de ser atravessados por algo impensável até mesmo para Guimarães Rosa – e, vou além, até mesmo para Nelson Rodrigues, autor da peça “A Falecida”.
Sim, prezado leitor, prezada leitora: minha interlocutora, ao se referir a uma amiga morta, extasiou-me não somente com a singeleza de uma lembrança afetiva, mas com um diminutivo afetivo que eu jamais escutara ou lera, se não sou traído pela memória: Ah! – disse-me ela – Isso aqui é do tempo da falecidinha Eliane!
Falecidinha. Simplesmente genial! Respeitoso e simpático; afetivo e curioso; hilário, até, por que não dizer? Afinal, falecidinha também poderia passar a ideia de alguém que morreu só um pouco, parcialmente, e que por isso pode ressurgir a qualquer momento. Seria incrível – ou assustador, dependendo do ponto de vista.
Falecidinha poderia significar, ainda, que Eliane era pequenina, miudinha. Ou, talvez (como me pareceu, aliás), deveras querida por minha interlocutora e por outras pessoas que a conheceram, hoje saudosas da amiga que partiu.
Quer dizer, querida? Não, não; não apenas. Queridinha, na verdade. Com carinho. Como a de Tchekhov, na ficção, ao se dirigir ao esposo. Porque a vida real da pós-modernidade, aumentativa e superlativa, clama por diminutivos afetivos. Nem que seja para aliviar o peso da morte ou aplacar a saudade.