Já está no ar minha crônica de fevereiro de 23 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, faço uma conexão entre os atentados terroristas ocorridos em Brasília (DF) no início deste ano e a clássica novela “Um Copo de Cólera”, de Raduan Nassar.
Confira!
(Ah, e aproveite para ler as colunas anteriores):
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Janeiro
O profético copo de cólera de Raduan Nassar
Por Ricardo Mituti
Os atentados terroristas ocorridos em Brasília no início deste incipiente 2023 fizeram-me recordar Raduan Nassar e sua clássica novela “Um Copo de Cólera”. E não porque a cólera tenha sido o real motivo da barbárie. Penso que os criminosos não estavam verdadeiramente encolerizados, no sentido literal da palavra. O que eles queriam, fiquei com a impressão, era desestabilizar a ordem e instaurar o caos, tendo em vista um almejado golpe de Estado.
Mas o que Raduan e seu copo de cólera têm a ver com isso? A breve e intensa narrativa do escritor paulista conta a história de um casal que se desentende abruptamente após uma noite de amor. E é a partir deste mote que o autor esbofeteia o(a) incauto(a) leitor(a) com pensamentos e reflexões que, para mim, soam quase como profecias desse nefasto episódio da história brasileira, ocorrido 45 anos depois da publicação da obra, e da forma de “pensar” e agir de alguns dos mais fanáticos apoiadores do ex-presidente da República, legitimamente derrotado nas últimas eleições.
Como, por exemplo, não ouvir a fala de alguém que não compactua com as ideias da extrema direita, independentemente de suas crenças políticas, a um “patriota” propagador convicto de fake news ao ler uma passagem como esta: (…) nunca te passou pela cabeça que tudo que você diz, e tudo que você vomita, é tudo coisa que você ouviu de orelhada, que nada do que você dizia você fazia (…)?
Ou, ainda, de imaginar um cidadão que perdeu todas as esperanças no eterno “País do Futuro” e em seus representes políticos ao se deparar com a amargura do pensamento que se segue: (…) num mundo estapafúrdio – definitivamente fora de foco – cedo ou tarde tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e você, que vive paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica uma piada: impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta; me recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso!?
Raduan corta ainda mais na carne quando parece dar voz às próprias crenças sociopolíticas: (…) ofendido e humilhado, povo é só, e será sempre, a massa dos governados; diz inclusive tolices, que você enaltece, sem se dar conta de que o povo fala e pensa, em geral, segundo a anuência de quem o domina; fala, sim, por ele mesmo, quando fala (como falo) com o corpo, o que pouco adianta, já que sua identidade jamais se confunde com a identidade de supostos representantes, e que a força escrota da autoridade necessariamente fundamenta toda ‘ordem’, palavra por sinal sagaz que incorpora, a um só tempo, a insuportável voz de comando e o presumível lugar das coisas; claro que o povo pode até colher benefícios, mas sempre como massa de manobra de lideranças emergentes (…).
Já na reta final do livro – o qual, não custa lembrar, foi escrito e publicado durante o regime militar no Brasil –, o narrador-protagonista escarra mais esta: (…) não há nada que esteja mais em moda hoje em dia do que ser fascista em nome da razão.
Por óbvio, frases e excertos soltos, fora de contexto, podem dizer algo diferente daquilo que realmente querem dizer – ou efetivamente dizem, na literatura. Mas eu, que confio nos livros e sei que vida e arte se misturam, uma emulando a outra, não posso deixar de achar mais do que atual o copo de cólera concebido por Raduan quase meio século atrás. Afinal, qualquer semelhança com a realidade (brasileira, sobretudo) não é mera coincidência.