Já está no ar minha crônica (quase conto, na verdade) de agosto de 22 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre ciúme, passado e relacionamentos amorosos a partir de um mix de Santo Agostinho, Liev Tolstói e Rodrigo Hilbert – sim, é sério! ;).
Confira!
(Ah, e aproveite para ler as colunas anteriores):
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Se até o Rodrigo Hilbert pode…
Por Ricardo Mituti
— Ainda bem que você veio…
— O que houve, cara? Fiquei preocupado…
— Vou embora de casa.
— Como assim?
— Isso mesmo que você ouviu: vou me separar. Não dá mais!
— Mas o que houve, cara?
— Fiquei sabendo de umas coisas que a Ester fez…
— Ela te traiu?
— Não literalmente.
— Como assim, “não literalmente”? Traiu ou não traiu?
— Na prática, não. Pelo menos não que eu saiba. Mas traiu minha confiança.
— Não entendi o “na prática”…
— Ela andou falando demais sobre o passado dela.
— Porra, cara! Passado?
— Sim, passado.
— Então o que ela fez, fez antes de se conhecerem, certo?
— Sim.
— E isso lá é razão para se separarem, meu?
— Se tua mulher falasse mais do passado do que do presente, talvez você não me fizesse essa pergunta…
— Ela fala muito sobre o passado?
— O tempo todo. A vida inteira foi assim. Parece autoafirmação, sabe?
— Tá, mas ainda assim o passado dela não tem nada a ver contigo, certo?
— Em partes. Quando você não deixa o passado pra trás, o presente vira passado, baseado em imagens do que aconteceram… E o futuro se torna impossível.
— Eita, porra! Agora você foi longe demais! Tá filosofando, meu?
— Não sou eu quem filosofo, amigo; Santo Agostinho já dizia mais ou menos isso… tirando a parte do futuro, que é minha…
— Santo Agostinho?
— Quando narramos coisas verdadeiras do passado, são extraídas da memória não as próprias coisas que passaram, mas palavras concebidas a partir das imagens que elas imprimiram na mente, como pegadas, pelos sentidos. Assim, minha infância que não é mais está num tempo passado que não é mais; mas a imagem dela, quando a lembro e narro, vejo-a interiormente no tempo presente, porque ainda está em minha memória. Do livro “Confissões”.
— Caceta! Você decorou tudo isso?
— Essa passagem, em especial, jogou luz na minha relação com a Ester.
— Veja bem: é preciso contextualizar o período e a situação. Você se incomoda em saber sobre o passado da sua mulher, mesmo que não tenha nada a ver com isso, porque ela fica falando dele, e o pensamento de um Santo, escrito há sei lá quantos séculos, e não sei exatamente por qual razão, te motiva a se separar dela? É isso mesmo?
— Não exatamente…
— Meu, você não acha que tá exagerando no ciúme, não?
— Eles, todos os homens (…), são horrivelmente ciumentos a respeito do nosso passado. Kitty, personagem de “Anna Kariênina”, de Liev Tolstói. Uma personagem feminina é quem diz…
— Tolstói escreveu isso, foi?
— Ipsis litteris.
— Ok. Mas, veja bem… é preciso contextualizar o período e a situação…
— Contextualizar é o cacete! Não aguento mais saber quem ela beijou, com quem dormiu, de quem gostou, quem falava o quê pra ela. Porra, se eu quisesse saber, eu perguntava, concorda? Se eu não pergunto, é porque eu não quero saber!
— Meu, você tá muito nervoso! De novo: não acha que tá exagerando no ciúme, não?
— Não, não estou.
— Bem, é claro que você ia dizer isso…
— Não, não sou em quem digo. É o Rodrigo Hilbert.
— O Rodrigo Hilbert?
— O próprio.
— Aquele bonitão, casado com a gatíssima Fernanda Lima?
— O próprio.
— Aquele que cozinha, atua, constrói, pinta, faz artesanato, medita, cuida dos filhos e ainda tem olho claro?
— O próprio.
— Você tá tirando onda com a minha cara, meu? Achei que o papo era sério…
— Veja você mesmo.
Sacou com alguma raiva o celular do bolso da calça e fez rodar um vídeo no volume máximo. Segurou o aparelho na altura dos olhos do amigo, quase colado ao nariz do coitado.
Um ator dizia que nunca se importara com o passado das pessoas, que isso era um comportamento muito machista e que, portanto, não se interessava.
A câmera então corta para Rodrigo Hilbert. De braços cruzando, cabeça baixa, com um sorriso meio maroto, ele comenta: “Eu não me aguento muito com isso, não…”.
A bela Fernanda Lima, numa aparente tentativa de não manchar a imagem irretocável de homem perfeito do marido, interfere (mas não sem alguma ironia): “Ele só não gosta que eu fale de passado. Não existe passado. Eu não tive passado.”
— Convencido, agora?
— Rapaz! E não que o Rodrigo Hilbert disse isso mesmo?
— Pois é… Se até o Rodrigo Hilbert não se aguenta com o passado da Fernanda Lima, por que raios eu tenho que aguentar o passado da Ester?
Revelando que de coitado também não tinha tanto assim, o amigo interlocutor pegou o celular que repousava sobre a mesa, deu um único toque na tela e pressionou o aparelho contra o ouvido com a ajuda o ombro. Estalou cada junta de cada dedo, uma a uma, até que a esposa atendesse:
— Maristela — pronunciou, lábio inferior tremendo, cabelos grudados na testa, ensopados de suor —, pode tratar de jogar fora todas aquelas fotos, cartas e cartões de ex-namorados que você ainda mantém lá no nosso guarda-roupa. Além disso, não quero mais saber de troca de mensagens com esses caras. Não tem mais essa de amizade com ex, entendeu? Não importa se foi só um caso, se você tinha quinze anos ou sei lá o quê. Lugar de passado é no passado. Morreu, tá enterrado, entendeu? Não quero mais saber do seu passado no nosso presente. Ou nosso futuro corre sério risco, mesmo depois de todos esses anos. Ah, e digo mais: não me venha com o seu irritante “veja bem: é preciso contextualizar o período e a situação”. Contextualizar é o cacete! Se nem o Rodrigo Hilbert se aguenta com o passado da Fernanda Lima, por que raios eu tenho que aguentar o seu?
(Observação — irônica, registre-se: esta é uma obra de ficção. Mesmo! Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência. Exceto pelas falas de Rodrigo Hilbert e Fernanda Lima, verídicas, extraídas de uma edição do programa “Bem Juntinhos”, apresentado pelo casal mais lindo, fofo e inefável do Brasil. Se assim como a personagem desta narrativa você também não acredita que o Rodrigo Hilbert disse o que disse, clique aqui para assistir. A partir de 28 minutos, aproximadamente).