Já está no ar meu conto de abril de 23 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, volto à poesia a partir de um suposto sonho com um certo poeta português.
Confira!
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O sonho
Por Ricardo Mituti
Na noite passada eu sonhei que estava num consultório. O lugar era amplo, com duas grandes janelas e parecia recém-pintado de um branco brilhante. Havia pouca mobília. Num dos cantos, um cabide, sobre o qual pendia um simpático chapéu.
Fui levado até lá por alguém que não me lembro quem. Também não sabia ao certo o porquê eu precisava ser consultado.
A mesa do médico situava-se atrás de um biombo de madeira clara feito com placas de palha, de modo que era impossível vê-lo com nitidez. Só sabia que era um homem por causa da voz.
Vi-me sentado numa cadeira pequena e desconfortável, sem braços, de frente para o biombo. Do outro lado, a voz intuiu estranhamente sobre o meu humor e foi logo perguntando, sem rodeios:
– Quando começaste a sentir essa melancolia?
– Que melancolia?
– Ora, pois! Não negues que está melancólico.
Esbocei um sorriso sem graça.
– Não estou melancólico; acho que sou melancólico.
– E o que fazes da vida?
– Sou poeta.
Pude ouvir um risinho discreto.
– Tomas alguma medicação?
– Antidepressivo e ansiolítico.
– Bebes?
– Sou abstêmio.
Outro risinho.
– Só quem da vida bebeu todo o vinho / Dum trago ou não, mas sendo até o fundo, / Sabe (mas sem remédio) o bom caminho – declamou o doutor.
– Quem é você? – perguntei.
– Exatamente agora?
– Como assim?
– É que sou muitos.
– Como assim? Você é mesmo médico ou um maluco qualquer?
– Eu sou um doido que estranha a sua própria alma… – respondeu, em tom irônico e novamente declamatório.
Ergui-me, procurando a saída.
– Sente-se, gajo.
– Não sei o que estou fazendo aqui, não sei quem você é…
– Nada sou, nada posso, nada sigo. / Trago, por ilusão, meu ser comigo. / Não compreendo compreender, nem sei / Se hei de ser, sendo nada, o que serei.
– Não é possível… – balbuciei, ajeitando-me na cadeirinha. – Você não é médico; só está fingindo sê-lo. Você é o poeta…
– O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. // E os que leem o que escreve, / Na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm. // E assim nas calhas da roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama o coração.
Saltei na cama, palpitante. A lua ainda iluminava a parede do quarto.
Estiquei o braço em direção à cômoda, tateando o Rivotril. Mas só encontrei Fernando Pessoa.