Leituras do Ano: “Bestiário” finalizado

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A primeira vez que ouvi falar de Julio Cortázar (foto abaixo) foi quando Paulo Tedesco, hoje meu consultor editorial, enviou-me uma breve avaliação do meu Histórias (Quase) Verídicas, numa espécie de “degustação” do serviço de coaching literário que ele havia começado a oferecer ao mercado, no início de 2016.

Escreveu Tedesco, na ocasião: “Nunca é demais lembrar uma das máximas de Cortázar, que apota que o conto equivale a uma corrida de cem metros rasos, enquanto o romance, a uma maratona”.

Confesso que meu entendimento, naquele momento, também foi raso. E só compreendi a essência do que havia escrito Paulo Tedesco – e do que, na verdade, quis dizer Julio Cortázar – alguns meses depois, já aluno do Paulo, quando fui apresentado ao conto Casa tomada, do célebre escritor argentino.

Ao concluir a leitura de Casa tomada, lembrei-me do ensinamento de um outro querido amigo, meu editor Bruno Castro, responsável pela publicação do meu HQV.

Ao me devolver a primeira versão dos originais, Castro falou-me sobre uma tal de tabela SARE, bastante considerada por quem escreve contos. SARE é um acrônimo de Surpresa, Ambiguidade, Repetição e Exagero, quatro elementos essenciais para o gênero em questão.

E por qual motivo lembrei-me da tabela SARE ao ler Casa Tomada? Porque eu diria que Julio Cortázar é um mestre no uso da ambiguidade na narrativa curta.

Engraçado é que, quase um ano depois, comprei “Bestiário”, o último livro que li em 2016. E em uma das orelhas da obra está escrito exatamente isso, numa referência ao mesmo conto que me apresentou ao escritor argentino: “Outro de seus traços definidores [de Julio Cortázar] é a predominância da ambiguidade: dependendo do ponto de vista do leitor, “Casa tomada” pode ser encarado como um conto de horror, uma sátira social, um comentário político ou um thriller psicólogico”.

Para mim, Casa tomada é mesmo um pouco de tudo isso. Mas, ao ler os outros sete contos que compõem magistralmente “Bestiário”Casa tomada é a primeira das oito narrativas da obra -, concluo que thriller psicólogico seria a mais adequada das definições. Não apenas do conto em questão, mas de todo “Bestiário”.

E se fosse para definir o livro em uma única palavra, eu escolheria o adjetivo “perturbador”. E isso não é demérito algum; ao contrário.

O próprio escritor, de forma explícita, admite que “escrevi esses contos sentindo sintomas neuróticos”, conforme estampa a outra das orelhas do livro.

Ora, o relato de alguém que sofre de sintomas neuróticos não poderia ter outra característica que não fosse a perturbação, correto? Mas na literatura de Cortázar, essa perturbação é esplêndida e cirúrgica. Sem dúvida, “Bestiário” é um dos melhores e mais instigantes livros que contos que já li até hoje.

Nele, o escritor argentino é tão dono de suas narrativas – ou melhor, de cada uma das suas palavras – que o leitor é capaz de ver, compadecido, porém com nitidez, um narrador vomitar coelhinhos (conto Carta a uma senhorita em Paris); de sentir a dubiedade psicológica de uma mulher que vive em dois lugares, distantes entre si, ao mesmo tempo (conto Longínqua); de supor verdadeiros zumbis os passageiros de um ônibus, com flores nas mãos, que não toleram o único casal de mãos vazias do coletivo (conto Ônibus); de ter pena da maltratada criação de mancuspias – bicho imaginário nascido das “neuroses cortazianas” (conto Cefaleia); e de desconfiar da ingenuidade de uma criança que se vê no centro de uma cena brutalmente forte entre um animal e um homem (conto Bestiário).

Não gosto muito de comparações. Até porque, descontextualizadas, quase todas tendem a ser um tanto injustas. Mas, especialmente para quem não conhece Julio Cortázar, ouso registrar que o escritor argentino é o Machado de Assis da narrativa curta. Ou, talvez como ele preferisse ser reconhecido, hoje, o Usain Bolt do conto, dono absoluto – e com sobras – das pistas nessa insana corrida de cem metros rasos que é o gênero em questão.

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