Já está no ar meu conto (novamente, num misto com crônica) de outubro de 22 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, conto a história de um improvável encontro entre Nelson Rodrigues e o escritor estadunidense Mark Twain na fictícia cidade de Hadleyburg, palco da novela “O Homem que Corrompeu Hadleyburg”, de Twain. E isso porque o ufanista Rodrigues estava fugindo do polarizado processo eleitoral vivido pelo Brasil.
Confira!
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Quando Nelson Rodrigues fugiu para Hadleyburg
Por Ricardo Mituti
Hadleyburg era a mais honesta e certinha cidade em toda a região. Tinha mantido sua reputação imaculada por três gerações, e era mais orgulhosa disso do que de qualquer outro bem. Era tão orgulhosa e tão ansiosa em assegurar a perpetuação de sua honestidade, que começava a ensinar seus princípios a seus bebês já no berço, e fez dessas lições os pilares de sua educação, devotada a manter sua cultura. Além disso, as tentações eram mantidas distantes do caminho dos jovens em seus anos de formação, para que sua honestidade tivesse o máximo de possibilidades de cimentar-se e solidificar-se – até se tornar parte de seus próprios ossos.
Mark Twain repassava mentalmente as primeiras linhas da novela recém-publicada. Óculos no bolso da camisa desabotoada, estava estirado de braços abertos e pernas cruzadas na altura dos tornozelos num dos bancos de madeira da simpática e ínfima praça central da sua fictícia Hadleyburg, em qualquer canto dos Estados Unidos.
Bocejava longamente, de olhos fechados, quando sentiu que alguém sentara-se ao seu lado.
— Só o mau caráter é que pode bocejar, na hora em que um povo se crispa e sofre.
— Quem é o senhor? — assustou-se o autor.
— Nelson Rodrigues, Mr. Twain. Ao seu dispor. — E estendeu-lhe a mão.
— Como você me conhece? De onde vem?
— Li seu livro. Venho do Brasil.
— Brasil? E como estamos nos comunicando, se não falo brasileiro?
— Primeiramente, nós, brasileiros, não falamos brasileiro; falamos português. Segundamente, porque ao contrário do que o senhor mesmo escreveu, esse nosso encontro não é aquele tipo de coisa impossível que você lê num livro, mas nunca vê na vida real; ele é tão real quanto este banco no qual estamos sentados — ainda que estejamos numa cidade fictícia, criada pelo senhor.
— Parece que você leu mesmo meu livro, ainda que eu não tenha a menor ideia de como isso possa ter acontecido. Well, whatever! Mas por que raios chegou me ofendendo?
— Desculpe, Mr. Twain. Não foi minha intenção. É que também escrevo. Sou jornalista e dramaturgo. E o que disse ao senhor, quando aqui me sentei, é um pequeno excerto de uma crônica que escrevi há muito tempo, mas que poderia muito bem se aplicar ao atual momento do meu Brasil. Acabei de fugir de lá. Desertei da pátria amada. Logo eu, patriota até a última cinza… Mas não tive outra escolha. Não dava mais! Pensei que poderia afogar minhas mágoas e me refugiar por um tempo que fosse na cidade mais honesta do mundo…
— Ora, mas se o senhor leu mesmo meu livro, sabe que Hadleyburg foi corrompida…
Nelson soltou uma gargalhada e tossiu aquela tosse catarrenta típica dos fumantes.
— Mr. Twain, logo se vê que o senhor pouco ou nada conhece dos governantes brasileiros.
O norte-americano ajeitou-se no banco, nitidamente desconfortável com aquela prosa estranha e encontro improvável — para não dizer impossível.
— Well, Mr. Rodrigues, e o que o fez fugir do Brasil? Aliás, antes que eu me esqueça, poderia esclarecer se Brasil se escreve com “és” ou com “zi”? Sempre tive essa curiosidade…
— Com “esse” — respondeu Nelson Rodrigues, secamente, enfatizando o “e” final (e, por óbvio, bastante contrariado com aquela pergunta). — E fugi de lá porque estamos em meio a um conturbado e traiçoeiro processo eleitoral para a escolha do nosso próximo Presidente da República.
— Deus, do que somos feitos… de que matéria estranha somos feitos! — comentou Twain, erguendo as mãos espalmadas para o céu e relembrando um trecho de sua própria obra. — O senhor tem a oportunidade de escolher seu próprio Presidente e foge do País? Isso não faz o menor sentido!
O dramaturgo brasileiro apoiou-se na novela do interlocutor para tentar se fazer entender:
— Mr. Twain, a maioria dos políticos brasileiros de hoje está mais corrompida do que todos os cidadãos de sua Hadleyburg juntos. Só que, claro, discursam feito heróis, os únicos capazes de tirar o país do lodo no qual o pobre afunda. E, como o senhor bem escreveu, nada no mundo como um persuasivo discurso para bagunçar o aparato mental, e balançar as convicções, e abalar as emoções de uma audiência não muito afeita aos truques e ilusionismos da oratória. É verdade que o povo brasileiro do século vinte e um parece ser bem menos inocente do que aquele do meu tempo. Eu, por exemplo, recorrendo novamente à sua obra, não estou acostumado a ser amedrontado por bravatas. Mas tenho muito compatriota que está certo de que o próximo Presidente, seja o atual ou o ex, vai mesmo dar um jeito na putaria — perdão pelo palavreado — institucionalizada que se instaurou na nossa linda Nação nos últimos tempos.
Mark Twain esfregou os olhos. Parecia atordoado.
— Well, Mr. Rodrigues, e o senhor veio a Hadleyburg na esperança de fazer uma espécie de detox — um aparte, I’m sorry, mas adoro essa palavra que li não lembro onde — da corrupção que, como diz, assola o Brasil com “és”? Na prática, entendo então que o senhor quer distância daqueles que são inimigos do seu país. É isso?
— Sim, Mark — permita-me chamá-lo assim, sem mais formalidades. — Até porque, não existe um inimigo fraco. Qualquer inimigo é sempre uma potência. Fracos e inofensivos são os amigos.
— Adorei essa frase. É sua?
Nelson Rodrigues deu uma tragada no toco de cigarro que ainda trazia pendurado na boca, sorriu discreta, porém orgulhosamente, e assentiu com a cabeça.
O criador de Hadleyburg ergueu-se do banco, abotoou a camisa e olhou com alguma piedade para o visitante estrangeiro.
— Nelson — sem mais formalidades, então —, não quero decepcioná-lo, mas insisto: se leu mesmo meu livro, sabe bem que a reputação de Hadleyburg ruiu como um castelo de cartas no dia em que a honestidade caiu sob uma grande tentação. Portanto, não será na cidade que criei que você conseguirá se ver livre da corrupção… Sua batalha pessoal na busca por um Brasil com “és” mais justo e decente não irá se resolver por aqui. I’m so sorry.
Ainda sentado, o escritor pernambucano jogou a bituca no chão, amassou-a com a sola do sapato, ergueu a cabeça e mirou o ficcionista das terras de Tio Sam.
— As vitórias fáceis desencorajam, desestimulam, deprimem, meu caro Mark.
— Adorei essa frase. É sua também?
— Yes.
Mark Twain sorriu com piedade.
— Só espero, Nelson — disse ele —, que esse Brasil com “és” que você idealiza e que tanto diz amar não seja apenas aquele tipo de coisa impossível que você lê num livro, mas nunca vê na vida real.
Despediram-se com um aperto de mãos.