Já está no ar meu conto de novembro de 22 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, conto a história da passagem do tempo para um casal de meia-idade (não sem alguma ironia, claro!), à luz do escritor argentino Jorge Luis Borges e de seu livro de contos “O Aleph”.
Confira!
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Eles, Borges e o tempo
Por Ricardo Mituti
Ela andava lamentando a flacidez da pele do rosto e dos bíceps. As pálpebras caídas. Os seios caídos. Até as nádegas, outrora firmes, agora duas lágrimas.
Ele não via nada disso. Não por ser ele – porque eles costumam não ser bons observadores. Ao contrário dela, achava-a ainda mais bela que outrora. Mais mulher. Menos menina.
Convenhamos, ele também não era mais um menino. Mas, ao contrário dela, não se incomodava com os fios brancos – na cabeça, na barba, no peito e até nas intimidades – e com as rugas na testa e ao redor dos olhos.
Ela sonhava em fazer procedimentos estéticos. Ele não aprovava. Não era preciso. A idade chega para todos – exceto para que os que se vão antes que ela aporte. E, convenhamos, ela, a idade, ainda não havia chegado, chegado mesmo; estava chegando. Fim do primeiro tempo. Havia todo o segundo tempo pela frente e, com alguma sorte, prorrogação e pênaltis. Importante era estar aqui e ter maturidade (ou melhor, resignação; maturidade soa ambíguo demais para o caso em questão!) – para aceitar a maturidade.
Claro, no fundo ele reconhecia que estavam envelhecendo. Os óculos de descanso já não descansavam mais nada; ao contrário, obrigavam-no a encurvar-se ainda mais sobre a tela do computador. Se a lombar fisgasse, o jeito era aumentar a visualização da tela de cem para cento e quarenta por cento.
Ele, mesmo assim, com lombar fisgando e vista cansada, não se incomodava. C’est comme cela la vie! Para ela, porém, c’est comme cela la vie era o cacete! Louvados sejam o silicone, o botox, o preenchimento, a plástica e a fita adesiva – se fosse o caso.
Numa noite, já deitada, ela esfregava uma colher de alumínio em volta dos olhos. Tinha ouvido falar que atenuava os pés-de-galinha. Ele riu.
Caminhou sem pressa – por causa de dores recentes nos joelhos, na verdade – até a biblioteca e puxou Borges. Voltou com “O Aleph” embaixo do braço. Pôs os óculos (só para manter o ar intelectual que tanto fazia bem para sua vaidade, registre-se), pigarreou e, encostado ao batente da porta, proferiu, solene: O passado é a substância de que é feito o tempo; por isso é que este se torna passado imediatamente. “A Espera”, página cento e vinte e sete, anunciou.
Como ela continuava esfregando o utensílio no rosto, ele avançou algumas páginas e investiu novamente: O tempo que se foi fica na memória. “O Homem no Umbral”, página cento e trinta e dois.
Ela diminuiu o ritmo e abriu o olho esquerdo. Ele se ajeitou, levantou as calças largas do pijama e arrematou, com sorrisinho sarcástico: Depois dos quarenta anos, toda mudança se torna símbolo detestável da passagem do tempo. “O Aleph”, página um quatro quatro. Fechou o livro e apagou a luz.
Ela ergueu-se abruptamente, arremessou a colher sobre a poltrona, pressionou o interruptor e, dedo em riste, perguntou se o professorzinho de meia-idade não tinha mais nenhuma lição para ensinar a ela antes do sono.
Ele voltou a abrir Borges, folheou o volume gemendo alguma coisa incompreensível e leu, sílaba a sílaba: Dormir é distrair-se do universo. “Aben Hakam, o Bokari, Morto em seu Labirinto”, página cento e vinte. Deu boa noite, deitou-se e, em questão de segundos, começou a roncar.