Já está no ar minha crônica de janeiro de 23 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre os clássicos da literatura universal a partir do link entre um episódio verídico de “doação” de clássicos por uma escola e o curioso – e divertido – romance “A Vida Futura”, do jornalista e escritor Sérgio Rodrigues.
Confira!
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Aos clássicos o que é dos clássicos
Por Ricardo Mituti
Um estimado irmão da vida, professor na rede pública de ensino, enviou-me uma mensagem nos estertores de 2022 perguntando se eu tinha interesse em livros de Guimarães Rosa. Evidente que sim, respondi-lhe. Ele me disse que eram livros usados, alguns em estado de conservação apenas razoável, mas ainda legíveis. Sem problemas; continuo interessado.
Indaguei-lhe quanto à procedência dos livros. “São da escola. Todo fim de ano eles fazem uma limpa em livros mais antigos, especialmente clássicos, e passam adiante”. Como é que é? Eles se desfazem dos clássicos?, espantei-me. “Sim”, prosseguiu meu irmão. “Eles mantêm alguns, tipo Dom Casmurro, mas muitos outros vão embora.”
Meu interlocutor fotografou os títulos da caixa de doações, chamemos assim. Entre esses “muitos outros que vão embora”, um exemplar do “Primeiras Estórias” e outro de “Manuelzão e Miguilim”, dois superclássicos roseanos.
Passamos a falar sobre as razões daquela decisão. Falta de espaço físico para armazenamento, explicou-me, mas, acima de tudo, desinteresse crescente pelos clássicos. “Como é que é?”, tornei a me espantar, o tom de voz não disfarçando a indignação. Meu amigo comentou que a literatura contemporânea tem ganho cada vez mais espaço nas salas de aula. Tudo bem, respondi. Não há problema nisso. Afinal, há muita literatura contemporânea de altíssima qualidade e que há de se tornar clássica daqui a algumas décadas. Além disso, entendo que essa substituição é reflexo das exigências dos vestibulares, que hoje dão muito mais atenção ao livro contemporâneo. Mas daí a descartar os clássicos… e não consegui concluir minha argumentação.
Um clássico não é clássico por acaso. E um clássico não é clássico porque foi escrito séculos atrás. Um clássico é clássico porque trata de questões humanas atemporais, relevantes nos tempos de Homero, de Machado, de Guimarães, hoje e provavelmente no século XXX – a menos que nossa espécie tenha sido varrida do planeta até lá.
Essa pauta, aliás, sobre o valor dos clássicos, já tinha vindo à tona numa conversa que tive com uma colega coordenadora de Laboratório de Leitura formada por mim. Num dos estágios que ela fez durante a formação, com um grupo de meninas pré-adolescentes, essa minha colega trabalhou com a narrativa “Um Apólogo”, de Machado de Assis. Por ter sido escrita no fim do século XIX, evidentemente possui um vocabulário diferente daquele utilizado no dia a dia pelas participantes do Laboratório. E eu elogiei minha colega justamente porque ela se preocupou em “traduzir” as palavras menos conhecidas, mas não pensou em substituí-las, numa tentativa de reescrever a história.
Apesar do elogio, minha interlocutora me perguntou se eu não achava mesmo que ela deveria ter reescrito a narrativa, a fim de ajudar as garotas a compreenderem-na melhor. Logo me veio à mente um livro muito curioso – e contemporâneo – que li em 2022, intitulado “A Vida Futura”, do jornalista e escritor Sérgio Rodrigues.
A trama mostra a volta à Terra, em pleno século XXI, dos fantasmas de José de Alencar e Machado de Assis – no livro, apresentados como Jota e Jota. O motivo do retorno? A indignação de Alencar com uma acadêmica que propunha a reescrita de alguns dos clássicos da literatura brasileira.
Escreve Sérgio Rodrigues que a fulana Fez-se a principal ativista brasileira da compreensibilidade textual como ferramenta de inclusão social e plenitude cidadã num país de gente semialfabetizada – uma gente que ela defendia ter o direito inato de saber o que escreveram fundadores da nacionalidade como Jota e Jota.
O argumento é justo. Inclusive para outros imortais das letras também apresentados por Rodrigues.
Revela-nos Machado, no livro, que aprendeu que Defoe, Dumas, Stendhal e Twain são leitores felizes das versões ditas simplificadas de suas obras. Consideram-nas a maior homenagem a um escritor, por demonstrarem que as criações podem ser privadas das mesmas palavras que lhes dão corpo metafórico – como de um corpo literal nos privou a morte – e ainda pulsar. O grupo estava reunido no bar da praça, como toda tarde, à espera do pôr do sol.
– Que mais poderia um artista pedir? – perorou alguém, creio que Stendhal.
– Sim, de acordo – houve murmúrios de assentimento.
– É uma forma de existência superior da literatura – emendou Dumas, o mais loquaz defensor da cousa, bebendo um Napoleon.
[…]
– Os mundos ficcionais – prosseguiu Dumas, um chumaço áspero de cabelos crespos vibrando com as palavras – já não dependem do nosso verbo. Vagam por aí incendiando a imaginação de toda a gente, nas palavras dessa mesma gente. Não é esplêndido? A história que esboçamos na imaginação antes de lançar na página se converte num espírito que sai voando em busca de novos corpos textuais, corpos mais jovens, cada vez mais jovens. Como pode um escritor ser contra uma coisa dessas, me diz? É o auge da criação, nada menos que o apogeu, o apogeu!
Admito que a passagem acima até agora me faz sorrir – e refletir. Porque a proposta, que no livro tinha nome e lema – Projeto Luta de Clássicos: “Quando mais gente entender, melhor” –, não me parece de todo bizarra. Rende, até, bons debates.
Ocorre que, depois de pensar mais detidamente sobre a obra de Rodrigues – a qual, registre-se, contém muita ironia, como você deve ter percebido –, sobre os clássicos doados pela escola onde meu amigo trabalha e sobre a “tradução” do apólogo machadiano pela minha colega coordenadora de Laboratório de Leitura, não pude deixar de concordar com o autor de “A Vida Futura”, que escreve, também, que Cada tempo tem suas palavras, seus meios, seus modos, seus medos. Entretanto, convenci-me ainda mais de algo no qual passei a acreditar, com a experiência, a respeito da suposta dificuldade de leitura dos clássicos: simplificar é menosprezar o intelecto e empurrar para baixo do tapete um problema muito mais grave, apresentado com clareza, mas não sem a típica fina ironia machadiana, pelo próprio Jota (Joaquim) Maria Machado de Assis no livro em questão: Fazer uma versão simplificada dos meus livros ultrapassa o vocabulário; há que cortar fundo na carne, na proporção exata do analfabetismo funcional cultivado com tanto esmero no corpo do povo. Ocorre que o mesmo pensamento nu, límpido embora, é hermético para quem não aprendeu a pensar. Em caso extremo pode ser de bom alvitre suprimir a obra de todo, deixando o nome do autor na capa e um maço de folhas virgens de entremeio; teria sua graça.
Ora, veja! Se chegamos aonde chegamos, num momento de País onde devassidão disfarçada de música e orgias disfarçadas de festas são muito mais atrativas do que os livros, sejam clássicos ou contemporâneos, é porque o bom e velho Jota infelizmente parece estar certo. Mas o que machuca, mesmo, é pensar que esse analfabetismo funcional, cultivado com tanto esmero em e por muito corpo, nem sempre é imposição de uma vida dura ou de uma sociedade injusta; ultimamente, parece ser escolha consciente e voluntária de muita gente.
Dessas pessoas, confesso, bem que eu gostaria de presenciar um belo puxão de pé pelo fantasma de Jota de Alencar.