Confira a crônica de junho de Ricardo Mituti no Blog Tesão Literário, de PE

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Confira a crônica de junho de Ricardo Mituti no Blog Tesão Literário, de PE

Já está no ar minha crônica de junho no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.

Na Lego Ergo Sum deste mês, resolvi me aventurar numa espécie de “conto-crônica-fantástica” – seja lá o que isso possa significar – reunindo na imaginária mesa de um bar pé-sujo da Grécia um grupo de amigos, Lorde Henry – espécie de antagonista do perturbador romance “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde -, e o filósofo Epicuro. Tudo isso para falar sobre hedonismo – de uma maneira pra lá de atípica.

Confira!

(Ah, e aproveite para ler as crônicas anteriores; basta clicar no mês: setembrooutubronovembro, dezembrojaneirofevereiromarçoabril e maio).

 

“Pare de caluniar Pipi”
Por Ricardo Mituti

Aquela devia ser a nossa quinta ou sexta garrafa de ouzo. A clientela, predominantemente local, olhava-nos com cara de reprovação, embora, ao que parecia, não entendia muito bem o motivo da altercação.

– Você é mau, sim, Henry! – disse o amigo literato, dedo na fuça do inglês.

– Mau não; você tem um demônio dentro de si! – complementou o filósofo. – Aliás, carrega consigo uma legião. Basta ver o que fez com o menino…

Enchi a boca com mais uma golada. Bochechei antes de engolir, fiz careta e apontei para fora.

– Vejam essa vista, senhores. Jamais conheci algo tão belo quanto o Egeu.

Henry era inatingível. Sentado com incomum desleixo na cadeira de vime (talvez por ser de vime é que não se incomodava muito com a própria postura), dobrou as mangas da camisa ainda impecavelmente alva e esticou o braço em direção à garrafa.

– Não vai beber mais coisa nenhuma, seu salafrário – gritou alguém (que eu não me lembro quem foi).

Um tapa ardido sobre a mesa ressoou logo em seguida, amassando ainda mais aquele pedaço de plástico azul e branco, arremedo de toalha do pé-sujo.

– Seu hedonista de merda! Não bastasse ter assassinado Dorian e agora você me aparece justamente aqui para caluniar o mais irretocável dos nossos amigos? Qual é a tua, seu aristocrata vagabundo?

Também não lembro bem quem foi que disse isso. Aliás, para ser honesto, não sei se foi bem isso que disseram. Só sei que foi depois de ouvir alguma coisa do tipo que o nosso ilustre visitante inglês esboçou se defender pela primeira vez:

– A calúnia é incompatível com uma personalidade tão franca quanto a minha -, disse ele, em tom quase inaudível, porém esnobe o suficiente para irritar ainda mais nosso grupo. – Ademais, só estou aqui, perdendo meu precioso tempo com vocês, pseudointelectuais de terceiro mundo, porque foi o próprio irretocável amigo de vocês quem me solicitou uma audiência. Dispus-me a satisfazê-lo porque, ao contrário do que me acusam, tenho profunda estima por ele.

– Estima é o cacete! -, berrou o filósofo. – Você deturpou o que ele escreveu, fez a cabeça do pobre Wilde sabe-se lá como… quer dizer, acho que sei como, mas isso não vem ao caso… e arruinou a vida do Dorian, literal e literariamente. Seu criminoso almofadinha! Por trás dessa cara simpática e bem-cuidada esconde-se o demônio. Pro inferno você e seus aforismos!

Lorde Henry esboçou um sorriso de canto e balançou a cabeça:

Admito que acho melhor ser belo do que ser bom. Mas, por outro lado, ninguém mais do que eu reconhece que é melhor ser bom do que ser feio.

Não pude conter a gargalhada. Dei mais uma golada no meu ouzo:

– Você é mesmo um filho da puta, Henry! – disparei, ainda rindo e batendo nas costas do inglês.

Lorde Henry tirou o relógio do bolso, mirou os ponteiros e voltou a guardá-lo, calmamente. Pegou o celular, digitou alguma coisa com agilidade atípica e, fingindo falar apenas para si próprio, comentou, agora em voz alta: “Finalmente. Está chegando.” Sua voz era mais estridente do que supúnhamos.

Pensei que ele aguardava um Uber ou algo assim. Instantes depois, nosso afetado visitante ergueu-se com delicadeza e fez um discreto sinal de mão em direção à porta. O filósofo animou-se porque achou que o britânico pedia mais uma garrafa a algum garçom. Mas não. Na entrada daquele pé-sujo da Ilha de Samos, vestindo apenas uma túnica branca pendurada sobre o ombro esquerdo, nosso mais irretocável amigo respondia ao aceno com um imperceptível gesto de cabeça e uma cara amarrada de dar medo.

– Puta merda! – comentou o filósofo, olhos arregalados. – É o Epicuro!

O literato empalideceu. Eu tremi. Tomei não um, mais dois goles. Dessa vez, deixei a bebida descer direto. Senti meu esôfago em chamas.

Epicuro aproximou-se da mesa a passos curtos e, ainda em pé, cruzou os dedos das mãos na altura do peito. Baixou os olhos em direção a Lorde Henry, que inexplicavelmente já havia se sentado, e perguntou, imperturbável, sem sequer nos cumprimentar:

– Por que profanas meu mais singelo pensamento?

– Nunca faria isso, meu caro. E se fazeis essa pergunta referindo-se à questão da felicidade, que abordastes na vossa famosa Carta, saiba que jamais busquei a felicidade. Quem quer felicidade? Eu sempre busquei o prazer.

– Esta frase é de Dorian Gray, Henry. Não tentes me escarnecer.

– Sim, prezado. Mas não vos esqueçais que tudo o que Dorian fez e disse em vida ele aprendeu comigo. Além do mais, a palavra exata pouco me importa. Felicidade, para mim, é sinônimo de prazer. E vice-versa. E, afinal, não fostes vós quem dissestes que é necessário cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, temos tudo, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la? Um WhatsApp para Meneceu e ele poderá confirmar isso…

Eu, o filósofo e o literato estávamos atônitos (ou embriagados) demais para reagirmos à audácia do britânico, em defesa do nosso ilustre amigo grego.

– Admita, Epicuro – prosseguiu Lorde Henry, embaralhando-se com o pronome de tratamento -, vós sois um hedonista.

– Caríssimo, vou repetir pausadamente o que escrevi ao estimado Meneceu para que entendas, de uma vez por todas, que jamais propus a felicidade a qualquer preço. Tudo o que formulei baseava-se na simples ideia que prazer é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Nesse sentido, ouve bem o que tenho a lhe dizer: o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda a escolha e toda a recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo. Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir. É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Portanto, ilustre lorde, o prazer ao qual me refiro passa por uma vida simples, de desejos contidos, a fim de atingirmos um estado de tranquilidade, libertos da dor e do medo.

Com o dobro do tamanho do ex-mentor de Dorian Gray, o grego descruzou calmamente os dedos ao final do discurso e, súbito, ergueu Lorde Henry pelo colarinho com facilidade, esbanjando força desproporcional à idade avançada:

– Tá claro agora ou quer que eu desenhe, caceta?

Nosso amigo filósofo, epicurista raiz, saltou da cadeira com ébria animação. Falando às cuspidelas, bateu três ou quatro palmas e cacarejou, sem erudição:

– É isso, seu burguês de merda! Pare de caluniar Pipi e vaza daqui agora mesmo!

O literato mijou na calça de tanto rir. “Pipi!”, “Pipi!”, “Pipi!”, repetia, esmurrando a mesa. “Um viva ao nisso irretocável Pipi!”, ainda brindou ele, com o copo vazio erguido sobre a cabeça.

Ao virar-se para indicar ao lorde britânico a porta que dava para o Egeu, o filósofo beberrão, pelo que me recordo, tonteou e espatifou-se sobre a mesa. Gargalhando com a própria desgraça, olhou de esguelha para Epicuro – que ainda erguia Henry pelo colarinho – e só então falou como um intelectual nato (ou quase):

– Leve-me ao teu famoso jardim, Mestre Pipi, e dê-me de beber da tua pura água e de comer das tuas orgânicas hortaliças, ainda não maculadas com o agrotóxico da ganância, porque esse tal de ouzo é mais forte que o diabo que habita esse inglesinho caluniador.

Epicuro soltou seu interlocutor, que a essa altura já havia borrado as calças, e retribuiu a súplica do filósofo do terceiro mundo com um sorriso piedoso antes de rumar em direção à porta que dava para o Egeu. Só foi pena nosso amigo estar desacordado.

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