Já está no ar minha crônica de dezembro de 22 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, reflito sobre o potencial humanizador dos livros a partir de uma obra do crítico literário James Wood e de um dos principais clássicos da literatura universal.
Confira!
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A literatura humaniza até o inumano
Por Ricardo Mituti
O crítico literário e romancista inglês James Wood escreveu um livro intitulado “A coisa mais próxima da vida”. Se você não o leu ou nunca ouviu falar de Wood, deve estar se perguntando: que coisa é esta, afinal?
A epígrafe do livro já traz a resposta, creditada a George Eliot – pseudônimo da escritora britânica Mary Ann Evans –, em “The Natural History of German Life”: a coisa mais próxima da vida é a arte. Segundo a autora, a arte é um modo de aumentar a experiência e ampliar nosso contato com os semelhantes para além de nosso destino pessoal.
Bonito, não acha? Arte, vida, experiência, contato com semelhantes, destino… tudo coisa de gente feita de carne e osso, nascida de pai e mãe e que tem afetos, sentimentos e vontade, certo? Não necessariamente.
Houve uma figura na literatura clássica que ousou desafiar a lógica e sentiu-se gente mesmo sem sê-lo na acepção literal do termo – ainda que, pessoalmente, eu a tenha considerado em diversos momentos da narrativa que conta sua história mais gente do que muita gente.
E como isso se deu? Por meio dos livros. Sim, senhoras e senhores. Livros sensibilizaram um monstro. Humanizaram o inumano (mesmo que apenas por um espasmo de tempo, conforme admitiu seu próprio criador: ele é eloquente e persuasivo, e tempo houve em que chegou mesmo a dominar meu coração, mas não confie nele.).
Meu bom doutor, confesso que ele também chegou mesmo a dominar meu coração. Exatamente no instante em que se revelou tocado pelos livros.
Ora, mas que livros são esses, você agora pode estar se perguntando? E de quem, afinal, está falando?
Se você ainda não conectou os pontos, aí vai uma dica – ou melhor, um excerto de da obra à qual me refiro: Mal posso descrever-lhe os efeitos que esses livros [O paraíso perdido, poema épico de John Milton; um volume de Vidas ilustres, de Plutarco, e As tristezas de Werter – ou Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe] causaram em mim. Ofereceram-me uma infinidade de novas imagens e sentimentos, que algumas vezes me levavam até o êxtase, embora mais frequentemente me lançassem no mais completo abatimento. Em “As tristezas de Werter”, além do interesse da narrativa simples e comovente, são examinadas tantas opiniões e tanta luz foi lançada sobre o que até então foram os meus temas obscuros, que nele eu encontrei uma infindável fonte de especulação e espanto. As maneiras delicadas e domésticas que ele descrevia, combinadas com elevados sentimentos que tinham por objetivo algo fora de si próprio, concordavam plenamente com a minha experiência entre os meus protetores e com os desejos que viviam sempre no fundo do meu peito. Mas eu achava que Werter era, em si mesmo, um ser mais divino de quantos eu já vira ou imaginara; seu caráter, sem o pretender, penetrava no fundo da minha alma. Suas dissertações eram calculadas para me maravilhar. Eu não pretendia penetrar no mérito da questão e, no entanto, inclinava-me para as opiniões do herói, cuja morte chorei, embora não compreendesse exatamente. À medida que eu ia lendo, considerava minha própria situação e meus sentimentos. Achava-me semelhante e, ao mesmo tempo, estranhamente diferente dos seres sobre quem eu lia e de cuja conversa eu era ouvinte. Compartilhava seus sentimentos e os entendia em parte, mas meu cérebro era imaturo (…). O volume que eu possuía das “Vidas ilustres” de Plutarco continha as histórias dos primeiros fundadores das antigas repúblicas. Este livro produziu em mim um efeito muito diverso do causado por “As tristezas de Werter”. Com Werter, aprendi a tristeza e o abatimento, mas Plutarco ensinou-me pensamentos mais sublimes; elevou-me para acima da ruinosa esfera de minhas próprias reflexões, ensinando-me a admirar e a amar os heróis do passado.
Admita – sobretudo se, como eu, você também acredita no poder transformador dos livros: isso é ou não é música para os ouvidos? Como coordenador de Laboratório de Leitura, já escutei belíssimas Histórias de Leitura e de Convivência, que comprovam o potencial humanizador da boa literatura. Mas o que dizer da passagem acima, quando o ser que a profere, solenemente, não é bem um ser? Como alguém que não é sequer gente pode se sentir tão profunda e verdadeiramente afetado pela poesia, pela ficção e pela filosofia?
Explica James Wood, falando sobre a ficção, que muito da observação aparentemente externa é ao mesmo tempo observação interna (…). (…) a principal diferença da ficção em relação à poesia, à pintura ou à escultura – as outras artes de observação – é esse elemento psicológico interno. Na ficção, temos a oportunidade de examinar o eu em todo seu desempenho e pretensão, seu medo e ambição secreta, seu orgulho e tristeza. É observando as pessoas seriamente que começamos a compreendê-las; olhando com mais atenção e sensibilidade para as motivações das pessoas, podemos olhar em volta e por trás delas. A ficção é extraordinariamente boa em dramatizar o quanto as pessoas são contraditórias. Mostrar como podemos querer duas coisas opostas ao mesmo tempo.
Pois é… não à toa o Jovem Werther de Goethe fez o que fez com a pessoa cuja história compartilho em partes contigo, que me lê. Mas, ora, ato falho da minha parte, já escrevi que esta pessoa não é bem uma pessoa. Trata-se de Frankenstein, a horrenda criatura feita em laboratório por um talentoso e ambicioso cientista.
Sim, meu caro amigo, minha cara amiga. Se Goethe conseguiu introjetar uma centelha de humanidade naquele que era considerado por seu próprio criador um demônio – e não há como negar que o velho Frank tenha se transformado num protótipo de gênio do mal no decorrer de sua existência –, o que o ilustre escritor alemão e tantos outros autores e autoras não poderiam provocar em você?
Recorro mais uma vez a James Wood para tentar introjetar, agora em você, que é de carne, osso, cérebro e sentimento, aquilo que os bons livros têm potencial de causar, desde que dê a eles alguma chance: A literatura nos ensina a notar melhor a vida; praticamos isso na vida, o que nos faz, por sua vez, ler melhor o detalhe na literatura, o que, por sua vez, nos faz ler melhor a vida. E assim por diante.
Que a versão não decaída de Frankenstein, aquela tocada por Goethe, Plutarco e Milton, possa inspirá-lo e inspirá-la a ter um ano de muitas leituras, e que a literatura, esta expressão artística tão humanizadora, seja, de fato, a coisa mais próxima da sua vida.
Feliz Livro Novo!