Já está no ar minha crônica de junho de 23 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre a vida viva dos livros a partir da leitura do esplêndido romance contemporâneo “Tudo é Rio”, da escritora mineira Carla Madeira.
Confira!
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Livros vivos
Por Ricardo Mituti
O filósofo grego Aristóteles teria dito que a arte imita a vida. Já para o escritor irlandês Oscar Wilde, a vida imitaria a arte muito mais do que a arte imitaria a vida.
Para ser franco, a mim pouco importa se um dos dois estava certo. Aliás, admito, concordo com ambos. Para mim, a literatura, especificamente, enquanto expressão artística, pode ir ainda mais longe do que emular a vida ou brotar de suas entranhas. Um bom livro, daqueles arrebatadores, pulsa. Se aproximarmos com atenção nosso ouvido de sua capa, é capaz de escutarmos algo que se assemelhe a um coração batendo. Ouso dizer que há livros que são seres vivos, de alguma espécie ainda não catalogada pelos cientistas por pura má-vontade com as letras.
Não faz muito e eu tive o privilégio de me encontrar com um desses caras – um livro vivo, e não um cientista. Foi uma experiência matadora. Sim, porque já li livros de todos os tipos, que me provocaram as mais distintas reações. Mas um livro assim, vivo, daqueles com o qual você se pega dialogando (literalmente!), isso é fenômeno mais raro de acontecer. Quando acontece, é porque rolou aquela química, sabe?
Não posso dizer que o livro em questão foi o melhor que já li porque eu seria injusto com Dostoiévski, Shakespeare, Tolstói, Hemingway, Machado, Guimarães Rosa, Clarice, Valter Hugo Mãe, Lygia Fagundes Telles, Carrascoza e tantos outros e tantas outras que me causaram terremotos, tsunamis e furacões, alternando-se no topo da minha sempre volúvel lista de livros preferidos. Entretanto, posso sim afirmar que o contemporâneo “Tudo é Rio”, da escritora mineira Carla Madeira, entrou para o rol dos meus queridinhos. Na minha singela opinião, ele sintetiza com maestria o que é essa grande jornada insana que, com sorte, pode durar algumas décadas e é permeada pelo tudo ao mesmo tempo agora.
Se você leu “Tudo é Rio”, talvez compreenda – ainda que não concorde, vá lá – o que tentei traduzir nos parágrafos acima. Mas, se não leu, é possível que tenha dificuldade de dimensionar o porquê considero este um livro vivo. Por isso, vou tentar explicar.
A obra-prima de Madeira retrata o céu e o inferno que habitam em nós. Vai do amor ao ódio em questão de linhas. Trata da fé, da loucura e do sexo com a mesma intensidade – e densidade. É obsceno e delicado. Aborda o sofrimento e a solidão com ímpeto que leva às lágrimas, secas capítulos depois com atos de generosidade, resiliência e perdão. É, em resumo, a vida como ela é – ou como deveria ser. E é por isso que é um livro vivo, que se comunica com o(a) leitor(a) e o(a) afeta tão descaradamente.
Mesmo tendo ele apenas duzentas e poucas páginas, consegui extrair seis dúzias de excertos para minha coleção. E se você, que não leu “Tudo é Rio”, ainda não se convenceu da força vital que anima este romance, permita-se refletir sobre algumas frases e trechos que tomo a liberdade de compartilhar contigo, por tema, caríssimo(a) leitor(a):
AMOR: O amor tem nome, mas não é nada que a gente possa reconhecer só de olhar. A dor a gente sabe o que é, tem lugar e intensidades que cabem na ciência. A raiva, o medo, o ódio entortam a cara com um jeito provável de se manifestar. Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo.
FELICIDADE: Um dia feliz tem mais poder que a tristeza de uma vida inteira. Nele moram as reviravoltas.
TRISTEZA: A tristeza escraviza, nos faz dependentes de que alguma coisa aconteça, nos obriga a esperar por um olhar, um movimento, uma coragem, um amanhecer qualquer que limpe nossas águas e nos devolva a liberdade, lugar onde a alegria encontra espaço para existir.
FÉ E SOFRIMENTO: O sofrimento, por uma insanidade humana ou por perversidade divina, tem valor. Assim creem os que creem. Encontram no calvário um sentido para além da vida. Todo o propósito oculto das coisas a Deus pertence. A dor sem tamanho afasta a coragem de não crer. Aceitam esse Deus imperfeito feito à imagem e semelhança dos homens.
DESTINO: Algumas vezes as mudanças acontecem na marra. Uma guilhotina afiada corta as nossas mãos, e todas as rédeas escapam. É o que pensamos ter acontecido, até que a gente se dá conta de que nunca houve rédeas. Ninguém monta na vida. Brincamos de escolher, brincamos de poder conduzir o destino. Precisamos dessa ilusão para viver os dias de antes, dias em que podemos tudo só porque pensamos poder, e então a vontade do que está fora da gente joga sua sombra densa e pegajosa. Ficamos prisioneiros do que não queremos muito antes da morte.
BELEZA: A beleza tem poderes de arrancar o sim.
CIÚME: Não se iluda, o ciúme pode destruir qualquer amor. Dá muito trabalho não deixar ele devorar a alegria de ficar junto.
PERDÃO: O perdão não existe justamente para perdoar o imperdoável? As bobagens, os pequenos atritos, os erros aceitáveis não precisam tanto de perdão, basta uma boa vontade, um pouco de amor e tempo, e tudo se dissolve.
MORTE: A morte põe um olho no passado e outro no futuro e deixa a gente cego na hora, no encontro do que foi e do que será, na tortura do que poderia ter sido. Impõe o desespero do definitivo, trava os movimentos. Embrulha o estômago indigesta. Faz frio nos ossos. A morte é vida intensa demais para quem fica.
Permito-me parar por aqui para não correr o risco de estragar a leitura de quem, espero, tenha se animado a trocar uma ideia com essa grande figura que é “Tudo é Rio”. Porque, muito provavelmente, ao conhecer Dalva, Venâncio, Lucy, Aurora e Francisca, entre outras personagens, irá se dar conta de que ou carrega um pouco de cada uma delas dentro de si, ou, por outra, já terá cruzado com elas em algum momento da grande jornada insana. Afinal, Aristóteles e Oscar Wilde deviam ter lá suas razões para acreditar no que acreditavam. Já eu, do pouco que sei da vida, só sei mesmo é que há livros mais vivos do que muito vivo que anda à solta por aí.